Coletivo Indra

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Ser Eu

"O coração é presente do meu filho, o teclado meu ganha pão, e a cerveja porque também sou filha de Deus! Mãe, provedora, e mulher!"

“Tenho lutado todos os dias para ser uma mulher. No entanto, no lugar onde nasci os homens tem sempre razão...”

As palavras do poema da Bruna Lombardi ecoam em minha mente em muitos momentos. Porém, eu diria que o peso e o privilégio da “razão onde nasci” está presente não só nos homens – no que diz respeito ao gênero – mas no patriarcado que em nossa sociedade determina o que é certo ou errado, bom ou mau, e por ai vai. Fico pensando nas dificuldades (ainda) de ser mulher... de ter nossas necessidades compreendidas não como uma benevolência masculina, mas como uma particularidade não diminutiva mas identitária. Fico pensando nas conquistas pelas mulheres alcançadas.

Penso nos retrocessos assustadoramente apontados pelos que vêem o mundo dividido entre “azul e rosa”. Penso na audácia (ainda) de alguns seres que se intitulam “homens” de achar que podem atacar uma mulher na saída de um banheiro publico de bar, na certeza sem sentido de que sairia impune depois de sanado o seu prazer. Penso nas tantas vezes que o choro do homem é visto como grandeza e coragem e o da mulher como fragilidade. Penso nos assédios sofridos por essas mulheres em seu local de trabalho e na força demonstrada por outras mulheres que se juntam e gritam “mexeu com uma, mexeu com todas”. Penso nos sutiãs queimados na praça em Paris. E penso que essas mulheres são BRANCAS!

E acho tudo incrível e forte... mas nem tudo me diz respeito! Porque sou uma mulher NEGRA. Enquanto muitas dessas mulheres lutam pelo direito de ter, fazer, estar, nós, mulheres NEGRAS, lutamos pelo direito muitas vezes de EXISTIR.

Penso que enquanto essas mulheres estavam queimando seus sutiãs na praça, nos estávamos nas casas delas tomando conta de seus filhos e rezando pra que a vida fosse uma boa guardiã dos nossos. Penso que “mexeu com uma, mexeu com todas” não se aplica necessariamente a “todas” porque, com a mulher negra parece existir uma permissão implícita determinada pela história de nossa construção social. Lembro de tantas empregadas negras que foram demitidas pelas suas patroas quando sofreram assedio dos homens delas e perceberam (e percebem) que não fazem parte do “todas”.

Penso que quando uma mulher BRANCA chora, emociona, provoca candura, comoção, enquanto que para nós, mulheres NEGRAS é dito: “Não chore! Que isso! Vc é uma guerreira! Vc é forte! Vc agüenta!” ... e na maioria das vezes quem nos diz isso acha que esta nos elogiando...! Não deixa de ser um elogio. Não deixa de ser real. Mas quando dito sempre, é também uma prisão. Como se a essa mulher não fosse permitido fraquejar.

Sou mulher, negra, mãe solo, autônoma, seguro minha vida a laço e na grande maioria das vezes sozinha. Minhas necessidades vão muito além do que prega o feminismo branco. O que me particulariza ao lado das minhas irmãs de cor. Mas são tantas as particularidades: a cor, a classe social, a referencia cultural, a região em que se vive nesse país continental... que é fato que não existe feminismo, mas feminismos.

É uma enorme demonstração de preconceito achar que uma visão ocidental, sudeste e burguesa pode dar conta de tanta diversidade!

O ser humano é múltiplo e múltiplas são suas questões. Com as mulheres não seria diferente, óbvio. Mas em algumas medidas e em alguns pontos, nos encontramos. Seja para nos entendermos ou nos ratificarmos, fato é que em alguns pontos nos esbarramos... e nos reconhecemos e temos então a possibilidade de mudar o rumo das coisas. Porque esses pontos de encontro são lugares onde a razão não tem vez. Como o poema continua dizendo

“E eu que não me interesso pela razão, mas sim por outros sentimentos,

Teço silenciosamente á porta de minha casa,

Junto ás outras mulheres de minha rua,

A trama de nossos instintos

E minha rua passa por outras cidades

Atravessa países

Não há fronteiras

Tecemos todas nós o mesmo fio

Matéria viva da nossa bandeira”

Que possamos a partir desses cruzamentos e intercessões tecermos todas nós o mesmo fio, mas que seja a matéria viva das tantas bandeiras formadas por cores, classes e regionalidades tão distintas desse continente chamado Brasil.

Tatiana Tiburcio

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