Coletivo Indra

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“Silêncio.doc” e o domínio público do fim.

Silêncio.doc

“O livro é uma forma cruel de aprendizado”.

Li a frase acima emNotas sobre o luto, novo livro da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi. Assim como a vida na sua práxis cotidiana, os livros ensinam tudo a todo tempo. A leitura faz a gente, através do outro, conhecer nós mesmos e dar um novo sentido ao que já tinha ou ao que, à primeira vista, parecia não ter.

Os dias que sucedem o término de um relacionamento amoroso se assemelha ao luto. São findamentos distintos, mas trazem consigo o processo individual e doloroso de conviver com a ausência de outra pessoa.

A separação é personagem frequente no que leio e no que escrevo. O fim das relações humanas é tão certo quanto a morte. Em alguns casos, ela se desenlaça e só damos conta tardiamente. Em outros, o fim representa o renascimento e vira um objeto de domínio público que nos ajuda a romper o silêncio da dor e nos faz aceitar e seguir.

A experiência de ler “Silêncio.doc”, livro escrito pelo ator, diretor, dramaturgo e roteirista Marcelo Várzea publicado pela Editora Cobogó, me fez reacessar separações do passado. O livro conta a história de um homem que tenta se refazer e entender as circunstâncias de uma separação amorosa repentina. Esse sujeito coletivo fantasmagoriza hipóteses, questiona culpas e se cala, carrega consigo as angústias e as dores de um fim que é pessoal, intransferível, mas cujo processo de ruptura se desdobra num ato público ao estilhaçar, direta ou indiretamente, pessoas do convívio da relação que perguntam, estranham e sentem falta.

A experiência pessoal do autor com uma “separação bastante traumática” (como ele mesmo define) dá uma dimensão ainda mais íntima e realista à obra. A voz uníssona de autor e personagem expõe as fragilidades e incertezas de um homem recém-separado e tudo inerente à sua condição masculina de lidar com um “não”, de romper pensamentos de natureza machista, de aceitar que não temos o controle das coisas, que o mar de amar seca e que nem sempre há algozes.

 Numa catarse corajosa, Marcelo quebra o silêncio e assume o trauma vivido. Acompanhado por um texto afiado, irônico e sensorial, ele baila sem medo na fronteira tragicômica que separa o trauma da cura.

A palavra nos atravessa com intensidade e nos coloca no divã das nossas próprias experiências com part-idas. Um grito individual que se revela coletivo.

 A leitura de “Silêncio.doc” me deixou com vontade de ver o Marcelo (re)vivendo essas palavras tão dele (e tão nossa) nos palcos. Sua separação - que virou monólogo, livro e espelho - nos ensina a compreender que se relacionar precede os fins. É como o “não” que já temos garantido antes de pedir qualquer coisa a alguém.

Só sente a dor desmedida e avassaladora de colocar um ponto final em algo , quem se permite amar e saborear a delícia que é começar a primeira linha. 

 Felipe Ferreira

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