Sobre mulheres e búfalo
“Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.”
Adélia Prado
Com exceção à “aceitar os subterfúgios que me cabem” e “espécie ainda envergonhada”, eu concordo com Adélia.
SER MULHER NÃO É FÁCIL! A LUTA POR DESCOBRIR-SE E ACEITAR-SE FORA DE PADRÕES ESTABELECIDOS DE BELEZA, COMPORTAMENTO, ATITUDE NÃO É TAREFA FÁCIL. IMAGINA ENTÃO SE ESSA MULHER É NEGRA?
Das mulheres não negras é admirado a força, entrega, coragem, determinação, tudo visto como uma vitória alcançada por essas mulheres que se libertaram do jugo da princesa na torre e ganharam o mundo. Ocuparam e ocupam o seu lugar na sociedade lutando por uma igualdade de direitos em relação aos homens. Das mulheres negras, por outro lado, tudo isso já é esperado. E cobrado.
O “anjo” macho, branco e esbelto, já anunciou que somos fortes, guerreiras, aguentamos muito mais que todas as outras. Esse sim é um fardo muito pesado para carregar, porque aprisiona. Aprisiona nosso choro, nossa fragilidade, nossas angustias. A nós não é permitido fraquejar. “Como assim você tá chorando?
Uma mulher forte, guerreira que nem você não fraqueja”, “Enxuga essas lágrimas”, “Você é um mulherão da porra!”. São frases que muitas vezes nos são ditas em momentos difíceis como forma de consolo, com a intenção de levantar a auto estima, mas que na verdade são mãos em nossa boca tapando no primeiro minuto o nosso grito, nosso choro, nosso transbordar. A tristeza também faz parte da vida e as vezes é preciso cair pra se levantar e ir em frente. Todo mundo precisa desse tempo de luto, de viver a dor da queda.
No entanto, parece que pra nós essa não é uma possibilidade. Como se ainda hoje a humanidade nos fosse tirada no sentido de que não nos é permitido sentir. A exigência da postura de fortaleza não pode de maneira nenhuma ser desfeita. As mulheres negras estão adoecendo no acumulo do seu choro e de suas angustias. “Enxuga as lágrimas, levanta a cabeça e segue em frente”, “De que luto você tá falando menina?” E tudo isso que existe, que é concreto e real, vai se acumulando dentro de nós, nos consumindo por dentro e nos levando pelo caminho da depressão, do pânico, das amarguras. Nos adoece e consome.
ESTAS SUBJETIVIDADES HUMANAS FORAM NEGADAS A POPULAÇÃO NEGRA. E A GENTE ACREDITOU NISSO.
Quando o coração se parte por um amor não correspondido, por exemplo, e a gente quer chorar, nos é dito se cale!
“VOCÊ É UM MULHERÃO DA PORRA”, “CHORANDO POR ISSO??”
Não tem colo! Não tem consolo afetuoso! Você esta mal e ainda leva uma bronca por isso! E assim a gente cresce sem saber lidar com os sentimentos, com as subjetividades. Se sufocando nas próprias emoções.
Lamento por você que se incomoda mas hoje eu vou chorar. Lamento por você que se incomoda mas hoje eu não me sinto “um mulherão da porra”. Lamento por você, mas hoje eu vou me permitir fraquejar, sofrer, sentir, viver meu luto seja lá pelo que for. Porque só assim, de verdade vou seguir inteira por dentro e por fora. Não somos de ferro! Não aguentamos mais dor do que os outros! Somos humanas e sentimos porque isso é viver em sua plenitude.
Lamento por você, mas Iansa hoje não vai virar búfalo. Hoje o vendaval será brisa.E nem por isso deixara de ser tempestade amanhã.
Tati Tiburcio
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