Coletivo Indra

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Sobre privilégios e desconstrução

É sempre muito cansativo para o sujeito negro ficar explicando e por vezes dando aula sobre os meandros do racismo. 

Mas vamos tentar mais uma vez.

Quando falamos de racismos, seja estrutural ou institucional, estamos falando de privilégios. Isso é fundamental que se entenda.

Muitos se incomodam com o sofrimento alheio, se incomodam com as perdas alheias, mas até o ponto em que esses sofrimentos e perdas não invada o seu infinito particular. Chegam ao ponto de chorar diante de algumas injustiças sofridas por outros menos favorecidos, mas no entanto, tudo é muito emocionante até o limite da porta de entrada do “seu mundo”. 

Acreditam, por exemplo, ser injusto que em um país onde 54% da população auto declarada negra e/ou parda, possua um congresso nacional com uma porcentagem irrisória de negros, pardos e indígenas (se bem que nesse caso, isso é até bom!). Ou que os cargos de grande importância e poder no mundo empresarial sejam ocupados majoritariamente por pessoas não negras, e os cargos de menor rentabilidade desse mesmo universo, seja ocupado majoritariamente por pessoas negras.

Mas, é curioso que, quando se propõe uma atitude que possa promover alguma mudança nessa realidade, essas mesmas pessoas – tão indignadas e que se comportam como paladinos da justiça e da democracia – dizem não! Chegam a achar um grande absurdo e até (pasmem!) uma atitude de racismo às avessas.

DESENHANDO... MAIS UMA VEZ

Quando falamos de racismo e suas consequências no contexto sócio econômico e cultural de nosso pais, estamos discutindo a partir de uma ideia de relação de poder.

O grupo que detém o poder é o grupo que dita as regras do jogo, simples assim.

Segundo o dicionário RACISMO significa:

  1. conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças, entre as etnias.

  2. doutrina ou sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior) de dominar outras.

Quando pensamos na maioria da população negra desse país podemos perceber que essa população NÃO DETÉM PODER. Nem político, nem econômico visto os exemplos mencionados anteriormente.

Se um grupo NÃO DETÉM PODER, como pode exercer PODER sobre outro? 

Se para exercer racismo eu preciso estar numa posição superior a outro, como o povo negro, que não detém essa posição no contexto em que a nossa sociedade esta estruturada, pode exercer racismo sobre o povo branco?

Assim sendo NÃO É POSSÍVEL FALARMOS DE RACISMO ÀS AVESSAS!!!!

Outro motivo pelo qual essa possibilidade se torna inviável, é a PRÁTICA.

Quando eu era menina sempre ouvia minha família falar muito sobre o quesito “boa aparência” nos anúncios de entrevistas de emprego. Aos poucos, fui entendendo que ter “boa aparência” significava não ser negro. Quanto mais clara a sua cor melhor a sua aparência.

Na minha adolescência era comum jovens cursando o segundo grau terem seu primeiro emprego em lojas como vendedores ou balconistas. Entregávamos o currículo, que na época era avaliado pelas escolas que frequentávamos e/ou pelo nosso endereço, pois não era necessário ter foto, e a empresa entrava em contato por telefone para marcar entrevista presencial. Normalmente já com a vaga definida.

Eu entreguei um currículo numa locadora de filmes no shopping da Gávea, lugar onde normalmente não víamos pessoas negras circulando como consumidoras.  Recebi uma ligação dois dias depois me perguntando se eu morava no bairro e confirmando informações do currículo. Pediram que eu fosse na segunda de manhã, antes do shopping abrir para contratação. Quando cheguei e a gerente me viu, perguntou se eu era a mesma pessoa do currículo deixado e quando eu confirmei que sim, depois de uma longa sabatina, ela disse que me ligaram por engano e pediu que eu fosse embora.

Certa vez, no supermercado Zona Sul, uma senhora branca puxou a bolsa e prendeu contra o peito quando me percebeu atrás dela em um dos corredores estreitos do mercado.

E eu poderia ficar aqui dando uma infinidade de exemplos de situações pelas quais passei e situações passadas por milhares de outras pessoas negras para explicar o obvio: PESSOAS BRANCAS NÃO PASSAM POR ESSE TIPO DE SITUAÇÃO. 

Pessoas brancas NÃO TEM as suas chances de emprego tolhidas por conta da sua falta de “boa aparência”; 

uma pessoa branca não é considerada um perigo eminente de assalto; 

uma pessoa branca não é presa acusada de assalto, por conta do reconhecimento através de foto, mesmo tendo provado que no dia e hora do acontecido estava trabalhando em uma padaria tocando seu violoncelo; 

NÃO EXISTE A POSSIBILIDADE DE UMA PESSOA BRANCA SOFRER RACISMO. NO MÁXIMO BULLING

NEM UM PASSO ATRÁS

Os brancos tem o privilégio de não se preocupar em tirar as mãos dos bolsos quando entrar numa loja, de não lembrar de segurar a nota fiscal do que comprou até sair de dentro de qualquer estabelecimento, de ter a certeza de que será cortejado; cresce acreditando que o mundo é seu. 

Nenhuma mãe branca precisa dizer para o seu filho não correr quando estiver na rua ou não esquecer de levar a identidade quando sair de casa e se for parado pela polícia não reagir e deixar as mãos à vista. 

Esses, dentre outros privilégios, criam no sujeito branco a certeza de que o mundo é seu. Aumenta-lhe a auto estima, a confiança; se vê espelhado o tempo todo para todo lugar que olha. Não se acostumou a ouvir um não. Não se acostumou a “não poder”, a “não ter”, a “não ser”. E não entendeu que isso faz parte de abrir mão de privilégios.

Então, quando alguns brancos ou não negros, parecem acordar para tais fatos e tentam usar o seu poder, ou seja, abrir mão de privilégios, ou ainda, criar situações para que esses privilégios não determinem os caminhos, estes são prontamente atacados com discursos repetitivos e vazios. 

Tentam desmerecer as atitudes de promoção de mudança e transformação com uma falsa ideia de pensamento democrático que, na verdade, esta calçado em um equivocado conceito de meritocracia .

O que a senhora Luiza Helena Trajano, empresária à frente do MAGAZINE LUIZA faz promovendo uma seleção de profissionais em uma área onde praticamente não vemos pessoas negras (vide a foto dos trainees do ITAÚ), voltado exclusivamente para pessoas negras, é mexer na estrutura de privilégios e usar de seu poder para a promoção de uma transformação real e imediata. Isso é cortar na carne! E não digo isso louvando a empresária – apesar de me alegrar imensamente com sua postura e de seu grupo provavelmente muito bem respaldado para se defender juridicamente da questão – digo isso porque é preciso apontar as ações afirmativas e dizer: Está vendo! É possível! Basta querer! E ela quis! Tinha na verdade a obrigação de querer por quanto da responsabilidade que lhe cabe estando no topo da cadeia econômica. Mas podia ser omissa, ou indiferente, e optou por fazer verdadeiramente sua parte e cumprir com sua obrigação. 

As acusações que sofre nesse momento de racismo asavessas, é daqueles que querem desmerecer sua ação por perceberem que ter atitude antirracista é dessa ordem para cima.

É partindo daí que uma pessoa que diz entender as questões raciais e que se propõe a usar de seu poder para fazer a diferença, tem de agir.  

E não adianta espernear, gritar, reclamar. Nenhum passo será dado para trás.

Tati Tiburcio

Instagram @tati_tiburcio