Coletivo Indra

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Um jeito negro de olhar o cinema

Essa semana, dia 3 de novembro, no MAM, Museu de Arte Moderna no Rio de janeiro, chegou ao fim o 12 Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul Brasil, África, Caribe e Outras Diásporas. Um encontro que teve seu início no dia 23 de outubro no Cine Odeon com uma linda homenagem à atriz Lea Garcia e como convidada de honra a ativista, professora e escritora Ângela Davis. Um encontro que tive a honra de apresentar a alguns anos atrás e que neste ano tive a honra maior ainda de participar com minha primeira imersão no cinema: o curta/piloto A FACE NEGRA DO AMOR.

Ao chegar no Odeon naquele dia 23 de outubro, à noite, lembro de ter pensado que estava vivendo um daqueles momentos especiais que a gente tem que guardar para sempre na memória. A Cinelândia, palco de tantas lutas, manifestações, protestos, resistências – inclusive culturais – de nosso povo e da sociedade em geral – era mais uma vez palco e cenário para um ato político, cultural, e porque não dizer também, de resistência.

Um enorme telão montado do lado de fora para aqueles que não conseguiram entrar compartilhava a festa/luta lá de dentro. Uma praça lotada de gente preta, paramentada com suas identidades traduzidas em vestes, cores, sorrisos e orgulho ocupando um espaço que durante todo o ano não nos pertence. Fato. Ocupando com galhardia, força, talento, história, tradição, um espaço branco sim, mas que naquela noite se fez negro e iluminado como deve ser Aruanda.

Qualquer espaço me pertence, mas nem todo me convém porque não preciso. No entanto, este palco consagrado do cinema carioca é nosso também. Pelo menos por algumas noites durante o ano nossa cara, nossa produção, nossas histórias contadas por nós, da forma como queremos ver contadas, ocupa, brilha e agiganta aquele espaço que nos é negado nos outros dias.

Não por conta de uma administração x ou y, mas por conta de uma estrutura sócio cultural que carrega o racismo em sua estrutura e que privilegia um cinema que é branco e elitizado mesmo quando independente na maioria das vezes. Porque é muito caro fazer cinema. Estudar cinema. Se especializar em qualquer área do cinema. E nós negros não ocupamos essa camada social com acessibilidade econômica para fazer cinema... mas fazemos. E bem a beça! E uma vez por ano mostramos isso! Resistindo para existir.

“O cinema está em crise por conta da perseguição a ANCINE!”, dizem alguns. “As produções estão ameaçadas por falta de subsídios para realização”, dizem outros, “Um dos maiores festivais de cinema do Rio está fazendo vaquinha para acontecer por conta dos cortes de verba do setor”, lamentam outros. Mas para nós nada mudou ou nos afeta de fato porque essa luta, essa falta de grana, esse desespero que alguns privilegiados vivem no momento, é nossa constante realidade!

Nossa batalha diária para fazer o que amamos. Isso que tanto desespera e deixa perplexo alguns privilegiados é o cotidiano do artista negro brasileiro. E o mais engraçado é ver aqueles que nem consideravam que existíamos, agora virem com o papo de “temos que unir forças para salvar o cinema nacional!”. Cinema esse que nos ignora ou nos trata como cotas, mas que agora precisa de nosso número, da nossa voz para fortalecer o coro dos “injustiçados”... é no mínimo irônico.

Mas nós aumentamos o coro sim, porque não temos privilégio porque sabemos dividir. Nossa cultura é agregadora, generosa, mas não se enganem! Não é tola. Sabemos exatamente o que vemos e fazemos. Estendemos a mão e a voz não pela generosidade cristã, mas pela consciência de que tudo esta interligado e interdependente. 

E continuamos aqui. Na luta constante para fazer o NOSSO festival continuar existindo de forma brilhante como sempre. Com nossos cineastas que batalham em editais que muitas vezes são construídos de forma a não tornar possível a nossa participação, mas que abrimos uma brecha (porque somos desses) e entramos. Construindo nossas próprias câmeras e materiais de iluminação com resultados impressionantes unindo criatividade e competência para assombro muitas vezes dos privilegiados que não entendem como conseguimos! Unindo força numa corrente negra de apoio através de vaquinhas online e muita, mais muita solidariedade e parceria.

Nem sempre tudo são flores. Sejamos realistas: as vezes o pau come na casa de Noca! Rs. Mas nossa gente é assim: grita, briga, fala alto, mas se une na dificuldade e resiste sempre. Porque os privilegiados lembram de nós agora que estão perto de nossa realidade cotidiana, mas, daqui a pouco, quando tudo melhorar para eles, nós voltamos a ser esquecidos... por eles, mas continuaremos sempre existindo e resistindo por NÓS!

No espetáculo CANDACES -  RECONSTRUÇÃO DO FOGO, da Cia dos Comuns, a personagem da Tia Daiá dizia que “É preciso olhar pra trás pra ir pra frente! Porque o nosso espelho é um espelho de rainhas! Rainhas mães, rainhas guerreiras, Candaces! ”Naquela noite, e nos dias que seguiram até ontem, vimos dentro do Odeon, no MAM, no MAR e em muitos outros espaços da cidade do Rio de janeiro, nossos reis e rainhas refletidos em sua descendência colocando na roda seu talento e competência traduzidos em curtas, médias e longa metragens. Naquela noite vimos Aruanda descer e reinar na terra. E assim continuou até ontem, dia 3 de novembro. E quando o sol se pôs e o reino voltou para o mistério deixando aqui seus súditos preenchidos de força e coragem para continuar. POR NÓS! PARA NÓS! POR TODOS NÓS!

AXÉ

Tati Tiburcio

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