Coletivo Indra

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Uma oração atemporal “A Vida da Gente”

Comecei a ver “A Vida da Gente” 10 anos depois da sua exibição original. O tempo de uma obra é relativo e o apogeu da sua existência está justamente na atemporalidade. 

Em 2011, pela falta dele, nos desencontramos. Agora, no momento certo de cada encontro, revisito o álbum da minha própria vida. A fotografia é um registro eterno do que passou, do que fomos um dia. Olhar cada figurinha é montar um quebra-cabeça que nos coloca diante de pessoas, sentimentos e instantes. Outras coisas, além da poeira e do mofo, ficam impregnadas com o passar do tempo, mas ninguém é uma fotografia imutável. Ter estado ali não é uma sentença. As relações se tecem, se modificam, se transformam e ao olhá-las podemos sentir o estranhamento de não pertencer mais.        

A novela nos confronta com nossa incapacidade de ter as rédeas de tudo na palma do planejamento, no cabresto de projeções ora induzidas, ora adestradas, quase nunca reflexo de uma vontade autoral. O que eu tenho de fato eu preciso? O que eu almejo é o que realmente eu desejo? A gente passa a ter consciência disso à medida que crescemos, amadurecemos e começamos a entender que responder essas perguntas nem sempre será simples, instantâneo, mas os caminhos pra chegarmos até cada resposta se inicia e se finda dentro de nós mesmos. 

O texto e a delicadeza narrativa de Lícia Manzo e sua equipe de bordadeiros-roteiristas (Marcos Bernstein, Álvaro Ramos, Carlos Gregório, Giovana Moraes, Marta Góes, Tati Bernardi, Dora Castellar e Daniel Adjafre) nos conduz e encanta por sua existencialidade na singeleza cotidiana que faz da vida essa rede onde nos prendemos e equilibramos conforme a variação do seu imprevisível balanço. São personagens reais que fazem parte do álbum de qualquer família, independente da sua configuração, das bases que o alicerçam, dos vazios que o sucumbem. Nos identificamos com a vó que queríamos ter tido e que alguns tem/tiveram (D. Iná numa interpretação apaixonante e inesquecível da saudosa Nicette Bruno), com o pai que queremos ser e o pai que muitos não encontram (Rodrigo e Jonas, pais e filhos dissonantes no papel paterno e bem trabalhados na juventude de Rafael Cardoso e na experiência de Paulo Betti), com uma irmandade de alma que nos dá a mão desde que nos entendemos por gente (a relação intensa e espiritual de Ana e Manu nas atuações irretocáveis de Fernanda Vasconcellos e Marjorie Estiano), com mães de todas as forças e todas as fúrias (Eva e Vitória e uma correnteza turva de traumas e excessos numa composição magistral de Ana Beatriz Nogueira e Gisele Fróes).   

Os vínculos se constroem na infância, na chegada da vida adulta, no envelhecer e quando nos damos conta já estamos neles ou eles já são outros. Antes de julgar as pessoas, suas escolhas e suas fraquezas, precisamos lembrar que cada um é único. Somos passivos aos caprichos da vida, mas atuantes pela natureza inviolável do que somos.

Os laços familiares e afetivos não se definem por ordem genética, pelo sangue que corre nas veias, eles também se fazem e perduram por escolha. 

Viver é similar a imprecisão do verbo no gerúndio. Sempre está por terminar. É tarefa inconclusa, é obra aberta. É necessário estar sensível e exercitar a sabedoria para entender o que ela tem a nos ensinar. O que passamos fica na lembrança, nas cicatrizes, na saudade, em fotografias. Mas é passado, não volta, não se muda. Não sabemos o que nos espera na próxima curva, no próximo despertar. E se soubéssemos qual graça teria? Temos que tatear cada dia como algo desconhecido, inexplorado, e nos preparar para remontar o quebra-cabeça, quantas vezes forem necessárias, sempre que ele ruir e algumas peças sumirem soterradas pelas mudanças abruptas da ciranda da vida. 

Arquivo pessoal

Obrigado, L.M. pela possibilidade de eu reencontrar quem eu fui e ver de forma cristalina e humana minha metamorfose e quem me tornei até aqui. Em vias de completar 30 anos tento cada vez mais encarar a vida na simplicidade do seu amanhecer e me reconectar a quem eu sou sem a avalanche de expectativas, sem os olhares repressores, sem a autocobrança exaustiva. O eu de hoje olha pro eu de outrora e ri e chora e lembra e esquece. Assim é a vida da gente, uma paixão banal como a de G.H.  

Essa foto com minhas duas primas (Ana Caroline e Izabella) não tem nenhuma referência à história central da novela. A escolhi porque ela é quase uma releitura da foto dos três protagonistas no encerramento da abertura e por representar bem a ação do tempo, como olhamos uma foto hoje e viajamos pelo que ela nos faz recordar e sentir.     

Felipe Ferreira

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