Coletivo Indra

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Uma tempestade de areia à vista

Imagine uma caravana seguindo pelo deserto entre duas cidades árabes sagradas. Camelos, mulas, riquezas, soldados turcos, peregrinos, religiosos e sol, muito sol! No interior da caravana, uma noiva rumo ao marido prometido e um cadáver, em avançado estado de putrefação, sendo levado para o sepultamento junto com o milionário tesouro do defunto. Rondando a caravana, além do péssimo cheiro exalado pelo corpo em decomposição, um grupo de saqueadores prontos para atacar. Enquanto isso, uma forte tempestade de areia vem se aproximando...

Poderia ser o enredo de uma escola de samba do oriente médio. Mas é o enredo de um livro chamado O Alforje, escrito por uma iraniana que já viveu em diversos países. Seu nome, difícil de escrever, ainda é um mistério de como pronunciar: Bahiyyih Nakhjavani. Mais um livro impresso e distribuído pela TAG, projeto literário de assinatura mensal.

Alforje é uma bolsa dupla, fechada nas extremidades e aberta no meio. Muito usada para transportar coisas em sela de animal. 

A escritora conta a mesma história por nove pontos de vista diferentes: o ladrão, a noiva, o líder, o cambista, a escrava, o peregrino, o sacerdote, o dervixe e o cadáver.Nove personagens que mudam nossa visão dos fatos, mostrando com precisão e boa literatura o quanto muitas vezes o que chamamos de fatos são meras interpretações. E interpretações eivadas dos nossos próprios medos e preconceitos.

Para Bahiyyih, duas coisas são muito importantes: o quanto as fronteiras criam iniquidades e o poder das religiões para destruir quem tem crenças diferentes.

Fomos acostumados a pensar em fronteiras como se elas existissem naturalmente, em achar que é importante preservar nossa pátria, tanto que entendemos o patriotismo como algo digno de louvor. Em nome do patriotismo se cometem barbaridades. E toda a fronteira é artificial. 

Quando surge o termo cidadão do mundo, ele é restrito a quem tem dinheiro para viajar ou morar em qualquer lugar. Cada dia que passa, mais pessoas são escorraçadas de suas casas, cidades e países e são forçadas a perambular com a família em condições miseráveis, vulneráveis a todo o tipo de violência, encontrando fronteiras fechadas em sua frente. E religiões cada vez mais intransigentes vão se misturando à política, criando teocracias implacáveis que acabam destruindo a diversidade e a cultura, e legitimando comportamentos machistas onde a mulher, via de regra, existe para servir o marido.

Aqui fico confuso. Estou falando do Irã ou do Brasil?

No Irã, antes de 1979, ano da revolução islâmica, as mulheres podiam vestir-se como queriam, ir a universidades, eram cidadãs como os homens. Depois da sharia, lei islâmica que coloca as mulheres abaixo dos homens, toda diversão é proibida e elas são obrigadas a viverem cobertas da cabeça aos pés. Coloque no Google: “Irã antes de 1979”. Lá estarão fotos que permitem ver o retrocesso cultural e a violência legitimada sobre as mulheres naquele país.

No Brasil, estamos acompanhando a avassaladora invasão da política pela religião, determinando o que é certo ou errado à luz de leituras maniqueístas e abrindo caminho para a retomada do machismo histórico brasileiro, que avança de braços dados com o patriarcado que gerou esta nação.

Que tenhamos forças para contar uma outra história: de luz, não de trevas. Uma história colorida, como a capacidade de criar coisas belas que o brasileiro tem. E que essa tempestade de areia conservadora não cegue os olhos de nossas instituições, para que seja preservada nossa já combalida democracia laica.

Renato Farias

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