União Antropofágica
O porão era um local seco e escuro, com cheiro azedo de carniça. O sol de 40 graus, lá fora, deixava o ambiente ainda mais abafado. Não que o sol penetrasse o recinto. Não havia janelas, nem basculantes. Era um porão fechado, com apenas uma entrada, no alto da escada, que vivia fechada, escondida por debaixo de um tapete. Era como um alçapão medieval onde se jogavam aqueles considerados doentes.
“É perfeito”. “Vamos alugar”. Disseram os dois amigos que visitavam o bairro de Caxias, procurando uma casa com porão e porteira.
A senhora, dona do imóvel, sorriu de orelha a orelha. “Tempos difíceis, não está fácil colocar comida na mesa”. No caso, a mesa ficava na casa ao lado. Os rapazes seriam seus novos vizinhos de bairro.
“Vão pagar como?”
“Em dinheiro, três meses adiantados. Ficaremos até o final de Fevereiro”.
Era o décimo terceiro que a senhora sonhara. Afinal, décimo terceiro se tornou coisa rara. Desde as eleições de 2018 que não sobrava nada.
“Aqui estão as chaves, façam bom proveito do lar”.
E assim deu-se início o grande plano. Em poucos dias, a casa já estava movimentada. Vinha gente de todos os lugares do Brasil e se acomodava. Sempre cabia mais um. A proprietária não ligava. Acompanhava de longe a movimentação. Sempre em silêncio, sem muito alvoroço.
A primeira reunião foi acontecer só vinte dias depois do aluguel. Era véspera de natal, durante o almoço.
“A nossa primeira ata será a mais importante. Hoje decidiremos o que acontecerá.
Será um sequestro, um assassinato ou algo mais mirabolante?”
“Sequestro seguido de morte.”, propôs uma senhora.
“Assassinato a sangue frio em Brasília!”, outro gritou.
“Vamos sequestrá-lo, exigir sua renúncia e depois o liberamos.”, sugeriu outro que foi logo rechaçado pela palavra que usou. Ninguém estava disposto a soltá-lo, não depois de tudo que fez contra o povo.
“Por que não trazemos ele pra cá e o jantamos?”. Silêncio. O ambiente todo ficou em suspensão. “Esquartejamos e fazemos um churrasco com seu corpo. Vamos nos filmar comendo cada parte, até o osso. Depois reivindicamos tudo que queremos.” Disse Nina, a mais nova entre os presentes.
Foi uma euforia só. Era a ideia que faltava.
“Quem vai se atrever a lutar contra os canibais modernos?” disse o líder do movimento. “Estamos vivendo tempos sombrios. Desde 2016 que nossos direitos vêm sendo dizimados. Em 2019 entregaram cada patrimônio nosso ao estrangeiro, em 2020 tivemos milhares de mortos pela incapacidade do governo lidar com a pandemia e nos últimos dois anos, estamos sendo, dia após dia, transformados novamente em escravos. Prefiro ser índio. Não é isso que eles sonhavam? Ver-nos em estado primitivo? É isso que terão!“
“Vamos devorar esse maldito capitão!”
“Viva a União!”
“Viva”. “Viva!”
Iuri K.
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Iuri k.
é formado em Artes Cênicas pela Universidade da Cidade e Pós Graduado em Letras - Especialista em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo pela PUC-Rio.
10 anos de experiência em gestão empresarial (Pessoa Jurídica) no ramo das artes cênicas e produção cultural.
Ator, diretor, escritor, letrista, professor e produtor.
Mais de quarenta peças, novelas e filmes na bagagem.
Em 2010 fundou a Companhia Sala Escura de Teatro, escrevendo e dirigindo os espetáculos do grupo.
Premiado em 2013 com o Troféu Ítalo Rossi, de melhor ator coadjuvante no FITA, Festival Internacional de Teatro de Angra, por seu trabalho em “Porcos com Asas”.
Em 2014 foi convidado pelo Festival de Teatro de Curitiba para apresentar a "Trilogia dos Sonhos" na Mostra Principal do evento. Três espetáculos autorais, sendo o último deles, "Pesadelo", fazendo sua estreia nacional apresentada pelo Festival.
Em 2015 ganhou projeção nacional como ator interpretando os personagens "Claudinei" e "Claudinéia" na novela "I Love Paraisópolis" na Rede Globo.
Em 2016 passou a desenvolver os trabalhos sócio-culturais "Descentralização", "Circuito de Arte nas Escolas" e "Teatro Cruzada", levando espetáculo e oficinas teatrais às escolas municipais, lonas, arenas e comunidades do município do Rio.
Ministrou diversas oficinas como professor de teatro e preparador de elenco.
Como autor, além das peças que compões a "Trilogia dos Sonhos" e "3 dias ou Menos", escreveu o livro infantil “O confuso e misterioso roubo das vírgulas”, que deu origem à peça homônima da Cia Em Obra, eleita pela Revista Veja um dos cinco melhores infantis em 2015.
Letrista filiado a UBC - União Brasileira de Compositores, autor de músicas como "Vista de Frente Pro Mar", da Banda Melanina Carioca.
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