"VALE TUDO no escárnio verde-amarelo"
No ano da exibição original de “Vale Tudo”, 1988, eu sequer era nascido. Três anos depois vim ao mundo, cresci, me tornei um grande apreciador do gênero telenovela e ouvi os muitos comentários acerca dessa obra que além de marcar o Brasil, retratou-o de forma magistral em seus 204 capítulos fazendo duas perguntas à audiência: “vale a pena ser honesto no brasil?” e “quem matou Odete Roitman”?
A segunda, muitos já sabem e eu, incrivelmente, consegui chegar até aqui consciente do poder dramatúrgico desse mistério e sem saber a resposta. Já a primeira, é o fio do novelo de uma trama que transcende a si mesma e cuja atemporalidade permite que ela seja refeita três décadas depois com a mesma força do passado.
De 16 de maio de 1988 à 6 de janeiro de 1989 pra cá, constatamos que pouca coisa mudou. Tirando a moeda, as gírias, as roupas (algumas até já voltaram a ser tendência), a tecnologia e a estética da fome (em referência ao manifesto do grande Glauber Rocha), o brasil continua o mesmo. E chegar a essa conclusão assusta, entristece!
A trama de Gilberto Braga escrita com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères remonta o tabuleiro de princípios e valores morais que compõe a formação humana por um antagonismo de comportamentos e meios. A estrutura folhetinesca, muito bem trabalhada na representação identitária do país, se faz sob as características de um imaginário coletivo histórico em contraposição a realidade empírica dessa formação.
Sua narrativa antagônica confronta o público às contradições entranhadas na raíz da nossa formação individual e coletiva. As tensões sociais do frágil projeto de nação herdadas do período colonial são representadas numa alternância discursiva muito bem construída. A novela expõe um retrato sociocultural a partir do lugar e da vivência das personagens com a mesma força que questiona esse determinismo raso, num contradiscurso que mostra como o país vai além de chavões e estereótipos normatizados (como na cena do jantar onde Odete, a vilã de estirpe europeia, vocifera que brasileiro é um povo preguiçoso que não gosta de trabalhar, e na cena seguinte, Poliana adormece no sofá durante uma conversa com Raquel exaurido após mais um dia de labuta).
O recorte transversal faz da novela uma galeria de tipos emblemáticos e populares (vividos por um elenco primoroso e encantador) em diálogo direto com o público. Essa forte identificação cria um vínculo afetivo fazendo com que as “barreiras decadentes” (expressão dita por Heleninha num dos densos diálogos com o filho) que separam socialmente ricos e pobres se transformem em pontes que os aproximam e enriquecem o debate acerca da moralidade brasileira.
O conflito ético passa pela família, pelo trabalho, pela comunidade e mostra como poder e caráter são faces distintas da mesma moeda, mas nem sempre são equações exatas.
No topo da estrutura dramatúrgica mãe e filha são a representação clássica dessa discordância e o ponto de partida da história. Raquel (Regina Duarte) éa mãe que valoriza o trabalho e o suor de cada conquista, e Maria de Fátima(Glória Pires) é a filha ambiciosa que deseja subir na vida sem esforço, sem demora. Por vias nada ortodoxas, Fátima rompe abruptamente o cordão umbilical de expectativas maternas e segue rumo ao Rio de Janeiro para conquistar seus objetivos. Ela vende, engana, dissimula e reencontra César(Carlos Alberto Riccelli), modelo em franca decadência, com talento pra maracutaias e sem escrúpulos pra conseguir seu lugar no crème de la crème burguês.
Sob a hospitalidade das mazelas sociais da capital carioca Raquel chega com o desejo de encontrar a filha. Após ser roubada ela conhece Ivan(Antônio Fagundes), um homem íntegro, profissional dedicado, prestes a assumir um grande cargo executivo. Com o passar do tempo a mãe enxerga o real caráter da filha, enfrenta as perdas e dificuldades com muito trabalho e decide ficar na cidade com o apoio e o amor de Ivan, que desempregado, percebe que num país onde as relações sempre se estabeleceram por status e influência títulos acadêmicos não garantem carteira assinada.
A descrença de Maria de Fátima com a honestidade e sua obstinação em ascender socialmente movimenta a trama em todos os seus núcleos. A vergonha da personagem com sua origem humilde e a naturalidade com a qual ela planeja/executa os meios mais sórdidos, justificando-os numa sociedade corrompida pelo poder e pela relativização do caráter, é verossímil e nos faz compreender certos pontos, ainda que tal comportamento não se justifique por seu mau-caratismo e pelos exemplos de honestidade das outras figuras do brasil.
A experiência de ver “Vale Tudo” hoje além de nos fazer revisitar um passado não muito distante, nos permite contextualizar toda a história no brasil atual. Os mesmos vícios, as mesmas contradições, os mesmos fascistas disfarçados de baluartes da moral, o mesmo elitismo burguês que acha que direito é caridade. Se manter ilibado diante tanta injustiça, tanta cólera e tanta cordialidade bestial exige resiliência e tenacidade.
O brado elitista que escorre da boca de muitos personagens é suscitado no mesmo discurso crítico avesso a cultura popular, a cultura de massa que classifica a novela como um subgênero artístico de menor valor e relevância. “Vale Tudo” e muitas outras produções da nossa teledramaturgia de ontem e hoje são verdadeiros ensaios antropológicos do que nos constrói e do que nós (re)construímos.
Felipe Ferreira
Instagram @ostrafelipe
Obs.: o brasil com “b” minúsculo é intencional e coerente com a pequenez que o assola.