Coletivo Indra

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Volta às aulas

Arquivo pessoal

Há uma ou duas semanas atrás uma polêmica tomou conta da colação de grau de uma universidade no Rio Grande do sul (UFGRS). Um dos formandos, na hora que teve seu nome chamado, levantou-se e recebeu seu canudo com um belo salto alto vermelho, e sem titubear, dançou alegremente num shortinho dourado que usava embaixo da toga. Exagero? Desrespeito? Penso que hipocrisia.

DURANTE TODA MINHA VIDA ESCOLAR, VEJA BEM EU DISSE TODA, EU SOFRI.

Desde ofensas racistas, brincadeiras sem noção, até violências verbais e físicas. Fui encurralada no banheiro (na época masculino) algumas vezes. Uma vez levei socos e tapas. Outra vez um menino urinou em mim. Outra vez fui obrigada a pegar no genital de um colega, porque segundo ele "era pra isso que eu tava lá". Nessa altura, alguns de vocês deve certamente estar pensando que sim, que eu estava lá por isso. Eu sei, ouvi muito isso! Com o tempo eu passei a evitar o banheiro, prendia xixi ou louca pra fazer cocô, mas não ia. Me urinei e evacuei em mim algumas vezes, quando não dava tempo de chegar em casa. Nunca desenvolvi infecções urinárias (o que era bem possível, já que ouvi relatos de outras meninas trans), mas sofri um bocado.

Eu morava no interior do Rio Grande do Sul, Santo Ângelo, cidade colonizada por alemães. Ouvi tanta piada racista que sei um compêndio delas, todas desmerecendo ABSURDAMENTE NEGROS. Lembro dos primeiros anos escolares. UM DIA ORGULHOSA DEPOIS DE TANTOS ANOS LEVANDO MEU MATERIAL NO SACO DE 5k AÇUCAR (o que não era problema pra mim, pois ao menos eu tinha material escolar), ganhei uma mochila sem alças. Nunca esqueci a sensação disso. Fui criticada por uma colega branca, (jamais esquecerei o nome dela Cibele), que disse que eu não tinha material porque minha mãe era negra. Isso doeu. E eu passei a dizer que era morena, mulata, qualquer coisa menos negra.

O tempo passou e eu cresci…

Os hormônios a flor da pele e eu era sempre rejeitada. Ser uma criança/adolescente trans é um fardo pesado. Ninguém entende, ninguém te quer perto e logo tu se apaixona pra sofrer. Comigo não foi diferente. Eram os anos 90. Já no "segundo grau" as coisas mudaram um pouco. Só no último ano me empoderei da minha parte afeminada e tomei coragem, dois ou três anos depois do término pra transicionar. Período difícil e libertador.

Anos depois já aqui em POA, ouço o relato de uma amiga trans que desistiu da faculdade porque estava cansada de ser hostilizada por um professor. Ele insistia em chama-lá no masculino, mesmo tendo um adendo na lista de chamada. Outra amiga cansou de ser hostilizada no banheiro feminino, e também desistiu. Seriam duas maravilhosas profissionais da saúde, trans ambas. TODOS OS COLEGAS SABIAM…TODAS SABIAM.NINGUÉM FEZ NADA.

Quando leio os relatos da atitude “alegremente escandalosa” do menino na formatura da UFRGS e principalmente os comentários cheios de moral e "mas", me lembro de cada momento desse e um especial: o dia que um colega bateu em mim com um relho na saída da escola, na frente de todo mundo. Não é o ato do menino em si que me incomoda. É porque nesse caso, EU ESTAVA LÁ, ESTAVA LÁ PRESENTE, e as pessoas tinham que lidar com isso.

TÁ NA TUA CARA! Você não pode fazer de conta que não viu a bicha afeminada de shortinho. Não é a vergonha, ou "o lugar errado", ou o incomodo que ela causa na sociedade, é em você, é sobre você. Que não vai deixar de falar sobre, nas tuas rodas preconceituosas como tu fazes.

Não é sobre ele… (o rapaz da formatura, ou a minha presença e de tentas manas e manos trans na sociedade)
É sobre você…
é sobre como você vai lidar com isso perante os outros, se você não der sua opinião preconceituosa e excludente, o que os outros vão pensar e falar de você!

Bichas afeminadas, gays, negros e trans são "persona non grata" em todo o lugar. A atitude escandalosa do menino foi só "viu..eu tô aqui". Se há decoro, dresscode, ou algo no regulamento que impeça são outros 500. Agora já aconteceu, já foi. Lide com isso.

Segue minha foto de formatura do segundo grau. Estava triste, meu pai não quis ir. Segundo ele "não ia ir passar vergonha". Ao lado minha melhor amiga Vivi. Do outro lado um menino que fui apaixonada Nivelson. Ao lado colegas de outras turmas que viviam fazendo bullying, minha cara diz tudo. Não queria aquela roupa, nem aquilo tudo. Minha mãe e minha irmã foram. Sem amigos. Sem ninguém.
Ah como eu queria estar de salto!

Valéria Barcellos

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