A crise da democracia e o perigo dos afetos
Nos últimos dias o noticiário político nacional teve estado as voltas com o processo de aprovação da reforma da previdência proposta na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, primeira barreira que passou essa que é a grande proposta do Poder Executivo. Um fato que chamou atenção nesse processo, foi a negativa de acesso aos estudos e dados técnicos que balizaram a proposta na forma que se encontra, conforme divulgado pela Folha de São Paulo.
A defesa do projeto feita pelo Executivo para a população, baseia-se, portanto, numa tentativa de convencimento de que a não aprovação da reforma impedirá investimentos em áreas essenciais ou o pagamento de futuras aposentadorias. Verdade ou não, a não divulgação dos dados coloca em dúvida esse projeto e evidencia a busca por apoio através dos sentimentos e não da racionalidade.
Em retrospecto, grande parte da campanha que se sagrou vencedora nas eleições e agora ocupa o Poder Executivo, foi construída com base num discurso pouco objetivo e em chavões de ordem, mas que pouco tinham a dizer de concreto. Pautas morais e conservadoras têm balizado grande parte do discurso desde então, ainda que pouco se possa delas levar para a prática (combater o marxismo cultural, a ideologia de gênero e o comunismo, quando sequer se tem noção do que de fato seriam esses conceitos e onde eles se apresentam).
A falta de clareza dos objetivos pode ser fruto de incompetência dos que ocupam os cargos para os quais foram eleitos ou nomeados, mas certamente não é de surpreender quando se vislumbra uma continuidade com a pouca profundidade das propostas e excesso de demagogia que foram apresentadas no curso do processo eleitoral.
Todavia, se isso não retira a legitimidade de este ter sido o projeto vencedor após o término do processo eleitoral (sem ignorar, obviamente, eventuais malfeitos cometidos ao longo da campanha), certamente diz muito sobre os eleitores – aquilo que os motiva e convence para depositarem sua confiança através do voto – bem como simboliza a crise da democracia como conhecemos. Pois, mais importante do que a substância das propostas ou os objetivos a longo prazo, o objetivo de muitos ao votar foi o de simplesmente questionar o sistema vigente.
Pautas e reivindicações difusas são observadas ao longo das manifestações dos últimos anos, algumas inclusive contrárias ao próprio regime democrático (como aqueles que clamam por uma intervenção militar). Mas esse não é um fenômeno exclusivo do Brasil. A vitória de um comediante para a presidência da Ucrânia nesta semana, sem qualquer experiência política, e que escolheu como um dos motes de campanha “se não tem promessa, não tem decepção”, ilustra a extensão mundial dessa crise e a sua atualidade.
Aliás, a vitória de Donald Trump, ainda em 2016, naquela que é vista como a democracia mais consolidada do mundo, e que alçou este outsider ao cargo mais prestigiado do mundo, mesmo com seus arroubos autoritários e posturas bastante questionáveis, certamente demonstra que ninguém está a salvo de ter os limites de sua democracia desafiados, ainda que esta estivesse consolidada há de mais de 200 anos.
Essa crise da democracia liberal tem sido bastante debatida na literatura acadêmica. Manuel Castells, um dos mais renomados cientistas sociais da atualidade demonstra como esse processo foi agravado em função da crise econômica de 2008, principalmente após os regimes constituídos terem trabalhado ostensivamente para salvar grandes empresas e bancos – muitas deles responsáveis pela própria crise especulativa – tendo sacrificado ainda mais as populações, já afetadas pelo desastre da econômica, através de cortes nos serviços essenciais de saúde e educação e toda sorte de práticas de austeridade.
Na França, as recentes manifestações dos Coletes Amarelos também são sintomas desse fato. Tudo começou por questões relacionadas ao preço da gasolina, cujas pautas se transformaram ao longo do tempo e passaram a englobar diversas queixas contra o presidente eleito e seu regime.
Assim, certamente não são apenas os brasileiros que estão questionando as bases do sistema democrático vigente, procurando alternativas que parecem estar fora dele e que possam oferecer uma solução a curto prazo para os problemas de suas vidas. Mas, qual o perigo de se questionar um sistema estabelecido? E qual discurso deve ser mais levado em consideração num momento como esse?
Ao discorrer sobre a racionalidade dos processos de comunicação, Vladimir Safatle cita o filósofo Bento Prado Junior para o qual na base do jogo da linguagem não estão os fundamentos racionais, mas aqueles que derivam de um certo tipo de afeto. Assim, o que persuade alguém não é verdade de uma proposição, mas a sua capacidade de mobilizar nossos medos e desejos, que leva a adesão a certas formas de vida, que são admitidas como corretas.
Ao levar esse raciocínio para a arena política, ou mesmo apenas para a disputa eleitoral, fica claro porque apelos a questões morais e pouco objetivas parecem ser mais relevantes que outras que de fato seriam da alçada do governante eleito. Não obstante, também demonstra o perigo de discursos anti sistêmicos e que emergem por todos lados em momentos de crise, muitos dos quais apelam à nostalgia de um passado que talvez nunca tenha existido, onde tudo parecia ser melhor e que a vida funcionava (“na ditadura era melhor”, “antigamente não tinha corrupção, “make america great again”).
Nesse sentido, Castells também chama atenção para o fato de que, em decorrência da magnitude dessa crise da democracia, que pouco responde as necessidades populares, junto a política do medo e do estado de permanente vigilância, leva jovens europeus, cuja vida é afetada pelo declínio da economia e lhes parece ser vazia de sentido, a serem atraídos por discursos de extremistas religiosos que oferecem, a partir de uma ruptura completa e do fim dessa existência, um paraíso para onde irem e uma relevância que nunca tiveram em vida, no qual “o sacrifício do humano da sentido a sua humanidade”.
A proeminência do apelo aos afetos, em especial aqueles que levam a negar todo o sistema estabelecido, e a falta de perspectiva na vida social são uma combinação desastrosa. “E assim é que a democracia liberal, já debilitada por sua própria prática, vai sendo solapada pela negação de seus princípios, forçada pelo assalto do terrorismo”, conclui Castells.
O cenário que se avizinha é certamente nublado, especialmente quando tudo parece convergir sem freio para um abismo de crise e autoritarismo – e em escala global. Assim, ainda que não seja possível a proposta de soluções, certamente é preciso discutir o rumo da história, para buscar uma forma de convivência para o futuro, a partir de perceber o perigo dos afetos e da pouca reflexão nas nossas escolhas.
O texto de estreia do nosso novo colunista Renato Noguera é contundente nesse aspecto. Amor e Esperança trazem ódio e medo com mais força para nossas vidas. Certamente o ódio que tomou conta das ruas durante o processo eleitoral de 2018 é fruto da esperança no seu resultado.
Assim, como Renato propõe, é necessário darmos espaço para a dúvida, como forma de não deixarmos que sejamos conduzidos apenas por nossos afetos, em especial no processo político. Pois, se a democracia representativa não nos permite a tomada de decisão direta – cujo exercício se concentra, sobretudo, na escolha dos representantes – certamente a dúvida e o questionamento devem nortear nosso olhar naquilo que é resultado desse processo de representação (propostas, leis, programas e etc.), na escolha dos futuros representantes ou ainda para outros projetos de sociedade.
O que se propõe aqui não é o conformismo com o que temos ou a negação de qualquer projeto de ruptura, diante da magnitude desse processo de crise, mas que as opções a serem perseguidas sejam fruto dessa reflexão a partir da dúvida que Renato nos propõe. Entre a inação e a destruição, a esperança ingênua e o niilismo, reside algo que podemos fazer, a nós e a sociedade – esta, que é reflexo do que somos enquanto indivíduos (o governante corrupto não é obra do acaso, mas emerge dessa mesma sociedade).
Ainda que não tenhamos uma resposta para essa crise que a democracia liberal atravessa, certamente não há razões para que isso permita o abandono das nossas noções civilizatórias, muitas das quais conquistadas às custas de muito sangue derramado. E se não for a gratidão com o passado suficiente para balizar o rumo que pretendemos tomar, então o respeito àquele que ainda virão também deve ser recordado.
A esse respeito, João Moreira Salles, recorda o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, que escreveu em 1942, antes de ser morto por se opor ao regime nazista, que
“em última instância, a pergunta que um homem responsável deve fazer não é como se salvar heroicamente, mas como será a vida para a próxima geração”.
Talvez esse compromisso ético com aqueles que já passaram e com os que virão seja o melhor que possamos fazer para não abandonar a busca por um caminho transformador, sem deixar que o vazio da desesperança nos impeça de agir, deixando que abram os portões que seguram os cães raivosos da barbárie.
Arthur Spada
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*Essa coluna é ilustrada com a obra “A liberdade guiando o povo” de Eugène Delacroix.