Os perigos do amor e da esperança

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As canções que falam de amor continuam entre as mais tocadas? Arrisco a dizer que sim. Os discursos políticos que prometem uma nova esperança vencem com mais frequência? Como dizem por aí, “positivo e operante”. Pois bem, eu quero defender uma pequena tese filosófica: esses dois afetos, o “amor” e a “esperança”, são perigosos!

O neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939), pai da psicanálise, nos ajuda a entender que amor e ódio são duas faces da mesma moeda. O psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) cunhou o neologismo “amódio” para dizer que odiamos na mesma intensidade que amamos. Ora, só podemos amar se formos capazes de odiar. Não é demais dizer que: “amar ao próximo” só é possível se conseguirmos “odiar o próximo”.  Por isso, a defesa incondicional do amor é uma fantasia. Não é possível viver o amor sem o ódio. O esforço civilizatório ocidental busca em vão reprimir e silenciar o ódio. Essa ilusão perigosa é um murro em ponta de faca. Afinal, o dia não existe sem a noite. Porém, o assunto é ainda mais profundo, não podemos eliminar o ódio, porque a espécie humana precisa dele tanto quanto do amor para viver. O ódio é um afeto vital que nos permite enfrentar adversidades. Com isso, estou dizendo que amor e ódio não são afetos voluntários. A vivência desses dois sentimentos não pode ser entendida como o ato de escolher, tal como decidir se vestiremos uma blusa vermelha ao invés de uma camiseta roxa. Amor e ódio são como a respiração, isto é, algo que foge ao nosso controle, natural e vital. Ninguém pode decidir parar de respirar; somente o ritmo. Da mesma maneira, não dá para eliminar o ódio, tampouco o amor. Mas, podemos aprender a ritmar esses afetos e trabalhar suas intensidades e consequências.

Na mesma linha de raciocínio, quando o assunto é esperança; não podemos esquecer o medo. Vale a pena lembramos os estudos filosóficos de Baruch Espinosa (1632-1677) que explica esses dois afetos como pares opostos inseparáveis. De acordo com o filósofo holandês, o medo e a esperança nascem de imagens duvidosas. O medo leva a preocupação e ansiedade diante de algo ruim que estaria por vir. A esperança aumenta o ânimo e a disposição diante de algo bom que pode vir a acontecer. Nos dois casos, não temos certeza se coisas boas ou ruins vão acontecer. Para Espinosa, o medo e a esperança funcionam como modos de controle político. Enormes populações podem tomar atitudes baseadas no medo de algo terrível que está por acontecer. O mesmo se dá com a esperança: as pessoas podem abrir mão da sua liberdade com base numa expectativa de um futuro melhor. Por um possível e incerto bem futuro (esperança) ou por um mal hipotético futuro (medo), as pessoas podem escolher um herói, um anjo salvador que simbolize os seus bons sentimentos e darem carta branca para que um ser humano especial exerça os seus incríveis poderes. O esquema medo versus esperança não é melhor maneira de fazer política. Uma ambivalência maniqueísta que diz algo como: “Deste lado do ringue vestindo calção cor de ocre, temos o símbolo da esperança. Do outro lado do ringue, usando a cor magenta, temos o medo”. As cores dos calções podem mudar (geralmente são vermelhos e azuis); mas, o modelo é o mesmo. A esperança contra o medo.  

Duas perguntas para quem está lendo este artigo. Nós vamos insistir no discurso do amor mesmo sabendo que não podemos amar sem odiar? E ainda, vamos fantasiar que a esperança e o medo são de naturezas completamente diferentes? Talvez isso explique o Brasil de hoje. É preciso assumir o ódio e o medo como inseparáveis do amor e da esperança. O que curiosamente pode ser a única maneira de descobrirmos que não precisamos odiar quem não amamos. E, ao mesmo tempo, não precisamos viver com medo se não tivermos uma nova esperança. Por um lado, o ódio de quem finge não odiar é mais destruidor do que o daquelas pessoas que assumem não amar todo mundo. Não é raro no cotidiano da vida privada que os amores mais românticos e profundos se transformaram em divórcios cheios de ódio e xingamentos. Da mesma maneira, as esperanças sociais fracassadas acabam aumentando algum tipo de medo coletivo. Sem dúvida, no caso da vida política, viver de esperança ou com medo também não resolve muita coisa. Porque ao invés de encaramos o momento e analisarmos a situação real das coisas, acabamos deslocando nossa atenção para um novo futuro, sem saber que rumos tomar no presente para chegar até lá. Porque não adianta saber onde queremos chegar se não temos a menor ideia do caminho que leva até lá. Não duvido dos bons sentimentos nascidos da esperança. Mas, só bons sentimentos não levam muito longe.

Meu convite é para refletirmos sobre uma combinação perigosa, insistir no amor e na esperança quase sempre traz ódio e medo com mais força para nossas vidas. Não estou dizendo para pararmos de buscar por amor e esperança. Mas, não podemos recorrer a esses afetos como sentimentos capazes de transformar o mundo. Eu quero chamar atenção para a necessidade de cultivarmos outros sentimentos menos profundos e redentores, tal como a dúvida. É preciso voltar a duvidar! Porque sem questionar algumas ideias, as fantasias se confundem com a realidade e os riscos são imprevisíveis.

Renato Noguera

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*Este artigo foi publicado no Jornal do Brasil em Janeiro de 2019, e escolhemos ele para a estreia do Renato Noguera por ser tão potente e provocador.