Coletivo Indra

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Da relativização à histeria

Gustave_Courbet_-_Le_Désespéré.

COMO ALCANÇAR A TÊNUE MARGEM DE SEGURANÇA ENTRE A HISTERIA COLETIVA E A RELATIVIZAÇÃO DE UM PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA?

O mundo vem acompanhando a disseminação do COVID-19, em que os primeiros casos foram notificados na China, se espalhando posteriormente para os demais países asiáticos, em seguida pela Europa e, recentemente, chegando às Américas.   

Até terça-feira, dia 17 de março às 18 horas, o Brasil tinha 8.819 casos suspeitos, 291 casos confirmados e um óbito pela doença. Obviamente essas informações já estão desatualizadas, uma vez que a cada hora novos casos são confirmados e, para exemplificar, durante a escrita desta coluna, saiu a notícia do segundo registro de óbito pela doença no Brasil.   

MAS O QUE LEVA ESSA DOENÇA A SE DISSEMINAR TÃO RAPIDAMENTE?

O potencial de transmissibilidade de uma doença infecciosa está relacionado à sua taxa de reprodução (R0). Esta, por sua vez, informa sobre o número de casos gerados a partir do caso índice. Por exemplo, se uma doença “X” tem R0 = 2, significa que um caso gera dois novos casos. Mas o que pode influenciar a R0? A dose infectante, o tempo de exposição e a virulência do agente são pontos fundamentais e influenciadores da R0.

Para ficar menos técnico, a dose infectante é a quantidade de agente (neste caso, vírus) que é inoculada no hospedeiro suscetível; o tempo de exposição está relacionado ao tempo de contato com alguém portador do vírus; e a virulência é a capacidade do agente causar doença grave. A R0 do COVID-19 varia entre 2-3,11. Isso significa que cada caso gera de 2 a 3 casos novos da doença.

Então imagine que cada caso confirmado será triplicado e assim sucessivamente. Considerando que é um vírus novo, todos os brasileiros (ou a grande maioria deles) são suscetíveis. Isso significa que naturalmente se expostos, seremos infectados e possivelmente desenvolveremos a doença. É natural, em um primeiro momento, ficarmos preocupados, entretanto, podemos relativizar o atual anseio ao observar outras doenças como Zika e Sarampo, que possuem R0 bem maiores, de 3 a 6 e 11 a 18 respectivamente. 

POR QUE ESTAMOS TODOS TÃO RECEOSOS COM A POSSIBILIDADE DE CONTRAIR ESTA DOENÇA?

O primeiro ponto a se considerar para a instalação do medo generalizado é a falta de informação. De fato, quando não temos propriedade sobre um assunto, facilmente somos levados aos extremos de relativizar o problema ou de exagerar nas medidas adotadas. Atualmente, e isso é uma sensação minha, existe uma histeria por parte da população sobre a possibilidade de contrair esta doença. O que entendo é que temos que ter parcimônia para entender que, a grande maioria da população que contrair esta doença, atingirá a cura esperada. E neste contexto, quero trazer alguns conceitos.

Uma doença é considerada grave quando ela gera um número elevado de óbitos. Isso é chamado taxa de letalidade. Se compararmos a taxa de letalidade da COVID-19 percebemos que a depender da faixa etária esta pode variar. Para pessoas dentro da idade economicamente ativa (18 a 59 anos) temos uma letalidade de 3%, entretanto na faixa etária acima dos 60 anos, temos um aumento desta letalidade que pode chegar a 18% nos acima de 80 anos. A Itália por exemplo, até agora, é o país com uma das maiores letalidades (7,31%), possivelmente pela característica de população mais idosa. 

Claro que a letalidade está relacionada não somente à virulência, mas também à assistência que é dada aos pacientes, em termos de diagnóstico oportuno e tratamento adequado dos casos. Considerando este último ponto, a depender do país, temos variações em termos de letalidade. O Iraque, apesar de um número pequeno de casos, tem uma elevada letalidade, cerca de 7,26%.

AINDA FAZEM PARTE DO GRUPO DE RISCO, ALÉM DOS IDOSOS, AS PESSOAS COM COMORBIDADES DIABETES, HIPERTENSÃO, PROBLEMAS PULMONARES E CÂNCER, COM A TAXA DE LETALIDADE VARIANDO ENTRE ESTES GRUPOS.

Sem sombra de dúvidas, as medidas de proteção individual têm como objetivo a redução de número de casos primariamente, com o objetivo de achatar a curva epidêmica, controlando o pico da epidemia e, a adoção de medidas mais extremas, como a quarentena, vem sinergicamente potencializando (assim esperamos) este retardamento da distribuição da doença na população, incluindo a fatia que é mais vulnerável ao desenvolvimento do óbito, os idosos. 

SÓ QUE REFERENTE A ESTAS MEDIDAS, PRINCIPALMENTE A QUARENTENA, MUITOS CONTRAPONTOS FORAM LEVANTADOS.

Aqui no DF por exemplo, inicialmente foram suspensas as aulas na rede pública e privada (escolas e universidades). A aparente justificativa foi pautada na facilidade de circulação viral em ambientes de aglomeração. Entretanto, já é sabido que as crianças demoram mais para manifestar e podem ser fonte de transmissão.

Quando impossibilito a criança de estar na escola, crio vários problemas: um é que muitas famílias dependem da escola para deixar as crianças e executar suas atividades laborais; segundo, muitas dessas crianças, com fechamento das escolas, ficam sob os cuidados dos avós, considerada população de risco para o óbito; terceiro, muitas crianças dependem da merenda escolar para alimentação básica. Eu poderia continuar enumerando tantos outros, mas o ponto básico é que entendamos que nem sempre a solução é fácil, e requer dedicação para que não sejam criados outros conflitos/dificuldades. 

Ao considerar o que foi dito acima, a primeira solução que vem na nossa mente individualista é que então deveríamos todos trabalhar de casa. Problema resolvido. Trabalhamos remotamente. Só que esquecemos que conseguimos fazer isso quando executamos um trabalho mais “especializado”. E a faxineira, o copeiro, o motorista, o vigia, o protocolador, o trabalhador autônomo – uber, taxista, prestador de serviço – dentre tantos outros? Que não podem realmente parar? Depois da reforma trabalhista, o trabalhador perdeu uma série de benefícios e direitos, e agora, com a necessidade de adoção de medidas de quarentena e isolamento, como fica esta parte da população que realmente não pode parar? Quando eu digo que não podem, eu estou levantando a possibilidade real delas não terem condições mínimas de sustentação, como alimentação, moradia, dentre outras necessidades básicas. Existe alguma dúvida de que, caso se estenda o período de suspensão das atividades, as pessoas que ocupam cargos menos especializados serão demitidas? As pessoas que realizam um trabalho mais geral, que não pode ser realizado à distância, podem ser facilmente substituídas e recontratadas após o término deste período.

AS SOLUÇÕES PRECISAM SER EQUÂNIMES E NÃO IGUALITÁRIAS, UMA VEZ QUE MORAMOS EM UM PAÍS CONTINENTAL ALTAMENTE DESIGUAL. 

Um exemplo de uma decisão equânime foi a de prover a merenda escolar semanal na rede pública do estado de Pernambuco. Os alunos receberão os kits da semana para levarem para casa. Na Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), no estado do Ceará, será fornecida ajuda de custo para os estudantes, em sua maioria africanos, pois os mesmos dependem da alimentação fornecida no RU.

MAS QUANDO DEVEMOS ADOTAR ESTAS MEDIDAS MAIS EXTREMAS, COMO A QUARENTENA?

Essa resposta acaba sendo muito difícil de elaborar porque cada situação, neste caso, pode ser única. Por ser um país de extensão territorial muito grande, podemos até considerar que cada estado configura um país diferente, o que faz com que tenhamos que os avaliar individualmente. O plano de contingência de COVID-19 do Ministério da Saúde trata sobre duas fases específicas de áreas com confirmação de casos: fase de contenção, onde as estratégias são voltadas para evitar a transmissão pessoa a pessoa de maneira sustentável e, neste sentido, as atividades de assistência e vigilância, como identificação de suspeitos e a própria quarentena são fundamentais para o retardamento do estabelecimento deste tipo de transmissão; e fase de mitigação, quando a transmissão pessoa a pessoa já foi estabelecida e, portanto, o objetivo é evitar casos graves da doença. Nesta segunda fase, precisamos fortalecer principalmente a assistência à saúde - o diagnóstico oportuno e tratamento adequado dos casos.

Se olharmos o Brasil de uma maneira geral, já estamos na fase de mitigação, uma vez que foram confirmados mais de duzentos casos, incluindo aqueles “gerados” em território nacional, ou seja, que a transmissão ocorreu localmente e sem ligação com pessoas que viajaram. Entretanto, nem todos os estados estão na mesma fase. Dia após dia, novos estados confirmam a transmissão autóctone e sustentada. São Paulo e Rio de Janeiro foram os primeiros estados a confirmarem transmissão autóctone, que também tem como termo “comunitária”. Então no momento, é importante avaliar individualmente cada área para tomar as medidas mais efetivas. No DF, por exemplo, a testagem é realizada nos pacientes graves. Então, se você tiver tido contato com alguém doente, mas não apresenta sintomatologia (ou sintomatologia grave), deve ficar em quarentena, seguir as orientações de repouso, beber bastante líquido e evitar o uso de medicamentos com ibuprofeno, mas não precisa ser testado. 

Essa medida visa qualificar a assistência para quem de fato precisa e evitar o abarrotamento da atenção primária (UBS) e secundária (ambulatórios e hospitais).

E POR QUE AS PESSOAS NÃO ESTÃO SEGUINDO AS RECOMENDAÇÕES DE QUARENTENA?

Aqui eu queria poder fazer um paralelo com a revolta da vacina, que ocorreu em 1904 durante a obrigatoriedade de vacinação contra varíola. Neste período, os meios de comunicação em massa eram restritos e isso era impeditivo para a capilarização da informação. Hoje, posso aplicar essa falta de informação para o grupo da população mais vulnerável, mas não para a classe média e alta, e são estas últimas que dão mais trabalho para seguir as recomendações.

No DF, um rapaz que teve contato muito próximo com o primeiro caso confirmado se recusou a realizar a testagem e a ficar em isolamento. Antes de ser obrigado judicialmente pelo Ministério Público a aderir a estas duas medidas, chegou a ir inclusive ao show do Maroon Five no estádio Mané Garrincha. Da mesma forma, em São Paulo, um rapaz que sabia que estava positivo e que deveria permanecer em isolamento, mas mesmo assim pegou um jatinho particular para ir a casamento em Itacaré/BA e acabou por disseminar o vírus entre os convidados. E claro, o exemplo mais recente de irresponsabilidade, o Presidente da República Jair Bolsonaro, considerado caso suspeito depois que 15 pessoas de sua comitiva aos Estados Unidos foram confirmadas com o vírus, aderiu aos protestos deste dia 15 de março contra o Congresso e Supremo. O objetivo aqui não será questionar os motivos do protesto, até porque para isso eu teria que escrever outros 10 textos, mas para mostrar o contraponto da relativização do problema da disseminação do COVID-19, principalmente por quem deveria ter mais seriedade e não colocar a população em risco. Aproveito para enfatizar que grande parte do público na manifestação aqui em Brasília era de idosos, grupo de risco.

E ENTÃO, O QUE DEVEMOS FAZER?

Precisamos manter a calma e nos empoderar das informações de fontes confiáveis e técnicas, como as secretarias de saúde, Ministério da Saúde e Organização Mundial de Saúde. As medidas tomadas devem ser respeitadas. O isolamento é fundamental para pessoas infectadas e a quarentena para pessoas que tiveram contato com casos confirmados ou provenientes de áreas com transmissão autóctone e sustentada. Precisamos proteger os grupos de risco: idosos, gestantes, lactantes, pessoas com comorbidades (hipertensão, diabetes, doenças pulmonares e câncer).

Não há necessidade de fazer estoque de comida, não estamos em guerra. Pense no coletivo, muitas pessoas não têm recursos para realizar uma compra grande podem ser prejudicadas com a falta de alimentos que a sua escolha individual pode acarretar. Não há necessidade de estocar álcool em gel, isso só faz com que o preço deste produto aumente e, mais uma vez, falte para quem precisa. E por falar em álcool em gel, se você estiver em casa, lave as mãos, é mais efetivo, inclusive, do que o álcool em gel. Dê preferência a realizar compras em pequenos empreendimentos. Escolha o mercadinho da esquina, a pequena lanchonete, a farmácia local ao invés das grandes franquias/multinacionais, estas últimas sobreviverão.

Tenha escolhas mais conscientes. 

Pratique o exercício para empatia. 

Lembre-se dos mais vulneráveis. 

Seguimos juntos.

Rafaella Albuquerque e Silva  

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