30 + 1: Ditadura nunca mais!

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Na madrugada de 31 de março de 1.964, o General Olímpio Mourão Filho ordenou que as tropas da 4ª divisão de infantaria, comandadas por ele em Juiz de Fora, partissem em direção ao Estado da Guanabara para derrubar o então Presidente João Goulart e tomassem o poder. Ao longo de todo aquele dia, militares espalhados por todo o território nacional passam a se articular para a deposição do governo constituído. As 13hs, porta aviões dos Estados Unidos são enviados para a costa brasileira. Próximo à meia noite, o comandante do II exército de São Paulo, General Amaury Kruel, então apoiador de Jango, pede a este a demissão de ministros ligados a esquerda, o que é recusado. Tal fato, leva o General a romper com o Presidente, influenciando outros destacamentos militares a tomarem a mesma posição.

No dia 01 de abril, militares tomam o Forte de Copacabana. O Presidente perde efetivamente o controle dos militares e decide deixar o Rio de Janeiro rumo a Brasília; posteriormente parte para o Rio Grande do Sul. Já na madrugada do dia 02 de abril, uma sessão extraordinária é convocada no Congresso Nacional, presidida pelo senador Auro Soares de Moura Andrade. Este, afirma que o presidente havia deixado o país – apesar dele ainda se encontrar no território nacional – e que a nação estava acéfala. É declarada vaga a Presidência da República. Ao fundo, se ouve os gritos de “Canalhas!” bradejados por Tancredo Neves.

A tempestade que se iniciou nesses dois dias durou vinte um anos. Suas nuvens negras, entretanto, ainda não se dissiparam. Aliás, nos últimos tempos voltaram a trovejar.

Nesse final de semana os eventos narrados acima, que marcam o início da Ditadura Militar no Brasil, completam 55 anos e coincidem com a gestão de um presidente manifestamente defensor dos atos ocorridos nesse período histórico. Assim, incentiva a comemoração da data de forma institucional, a qual, aliás, realizou, por vezes sozinho, ao longo dos últimos anos na esplanada dos ministérios, enquanto era deputado. Diante do debate travado sobre o assunto nos últimos tempos, inclusive sobre a natureza do regime militar, algumas coisas precisam ser ditas, em especial para desconstruir alguns mitos que tem ganho popularidade.

A história do golpe militar brasileiro deixa claro que este não ocorreu longe dos poderes instituídos para que pudesse se consolidar, cujo exemplo mais chamativo é o da sessão congressual citada acima, na qual o presidente foi deposto de forma farsesca. Posteriormente, o STF sofreu com a redução de suas competências, a impossibilidade de analisar crimes políticos por meio de Habeas Corpus e o regime militar aumentou o número de ministros na corte, para sempre garantir maioria.

Ou seja, diferente do que muitos ainda acreditam, um regime autoritário não se estabelece apenas pela força, seja no momento de assalto do poder ou para sua manutenção, mas pratica atos para dissimular certa legalidade, com vistas a parecer legítimo aos olhos mais incautos, diminuindo questionamentos e aumentando a sua legitimidade.

Exemplos semelhantes são frequentes ainda hoje, como o que se tem observado na Turquia e na Hungria. Ninguém está imune, portanto, a que o poder seja arrebatado por autoritários, que atuam com ares de legalidade.

Parece ser claro, portanto, que apenas defender a ratificação ou apoio das instituições pelos atos praticados – como afirmar que não houve golpe porque o congresso que cassou o Presidente João Goulart e posteriormente nomeou o primeiro presidente militar – seja suficiente para sua legitimação e afastar o seu caráter autoritário.

Recentemente tem ganho espaço a narrativa quanto ao golpe ter sido na verdade uma “contrarrevolução”, que teria impedido a tomada de poderes pelos comunistas, que iriam impor a sua ditadura no brasil, com o apoio da União Soviética.

O termo revolução designa uma ruptura abrupta e total da ordem até então estabelecida, sendo fundada uma nova forma de organização social. O exemplo mais famoso é o da Revolução Francesa, no qual a monarquia foi substituída pela democracia burguesa.

Parece ser óbvio que a existência de um movimento contrarrevolucionário demandaria a irrupção anterior de uma revolução, com chances reais de tomada de poder. A mera existência de pessoas ou organizações com esses ideais não é suficiente para usurpação do poder por seus antagonistas. Nada mais demagógico, portanto, chamar a ditadura de “contrarrevolução.”

Em 1.977 Leandro Konder ao se debruçar sobre o fascismo clássico escreveu:

“Privado de grandes respiradouros bélicos, o fascismo evolui contrafeito, caminha com dificuldade. Mas o sistema se recusa a deixa-lo morrer, porque precisa dele: dá-lhe injeções, reanima-o, sugere-lhe sucedâneos para os alimentos que lhe faltam (...) Se não é possível vende-lo por atacado, tenta-se vende-lo no varejo, a prestações.

Os mitos racistas e o antissemitismo estão desgastados, mas a “demonização” do socialismo continua a funcionar com excepcional eficácia. Políticos que nunca leram Hitler nem Mussolini falam do socialismo como uma força essencialmente antinacional, que deve ser implacavelmente combatida e aniquilada em nome da grandeza da nação, servindo-se quase que textualmente de expressões caras aos dois ditadores.”

Ou seja, a declarar existência de um inimigo a ser derrubado, seja chamando-o de comunista, terrorista ou corrupto é um mecanismo eficaz de regimes autoritários para conquistarem apoio, já que denota que suas ações aconteceriam em defesa do povo e não para controle e tomada do poder deste. A ameaça comunista foi o meio utilizado no Brasil de 64, ainda que nenhum indício de que organizações comunistas estavam prestes subverter a ordem democrática de então.

Outro aspecto que contrapõe um regime autoritário de uma democracia é o direito à informação e a publicidade dos atos públicos. Como defende Norberto Bobbio, um Estado democrático tem como princípio fundamental a publicidade, uma vez que os governantes devem exercer o poder sobre o controle dos cidadãos, os quais, por óbvio, somente podem fiscalizar aquilo que veem. E acrescento: o que veem e tem condições de compreender e debater publicamente.

Essa possibilidade de se informar, debater e questionar o governo, decorre do direito de liberdade de expressão, hoje assegurado constitucionalmente, seja através da liberdade de fala, reunião ou de manifestação. O brasileiro tem feito uso intenso desse direito, sobretudo após o advento das redes sociais, onde os governantes e suas atitudes são questionadas o tempo todo. As manifestações de massa que ganharam força desde 2013 mostram isso.

Num regime autoritário, onde a vontade do Estado vale mais que qualquer direito e esta se impõe pela força, o direito de expressão se torna incompatível. Seus atos não podem ser questionados e sequer são levados a escrutínio público. Corrupção, desmandos e abusos são trocados por receitas de bolo nos jornais. A falta de informação, todavia, não significa que não existam. Toda e qualquer manifestação que pareça contrariar o governo precisa ser interrompida, a qualquer custo, para manutenção do regime.  

Por isso, é impossível falar de ditadura, sem falar da violência institucional, cometida principalmente contra aqueles que ousaram questionar o regime e se colocar publicamente contra ele.

Por essa razão, não há como contrapor, em pé de igualdade, os atos praticados por aqueles que contestavam a ditadura, ainda que violentos, em face dos atos do Estado. Este último, deveria agir sempre dentro da lei em benefício de seus cidadãos e jamais contra estes. O cidadão, por outro lado, caso cometa algum crime, deve ter direito a um processo justo, com ampla defesa e contraditório, sendo sempre assegurada sua dignidade. Logo, a violência cometida pelo Estado é sempre mais grave, seja no período da Ditadura ou a que ainda se testemunha hoje, pois contraria um Dever deste.

Para o Estado não existe vingança e sua função é assegurar direitos. Já o indivíduo tem como um de seus direitos mais básicos a liberdade, em todos os seus aspectos. Essa,

“que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.

O que fazer quando a sua liberdade é usurpada pelo governo?

Na ditadura, a tortura passou a ser um instrumento de interrogatório sistemático e contava com instituições próprias para isso. A história das pessoas que passaram por isso, sendo submetidas a esses atos extremamente cruéis a fácil de ser encontrada, em especial pelos trabalhos de exposição que foram desenvolvidos nos últimos anos.

É preciso que se diga, que estes atos não foram praticados apenas contra aqueles que teriam efetuado “crimes contra o regime”. O caso mais emblemático é o do jornalista Vladimir Herzog, que se tornou icônico em razão da foto na qual o regime buscava simular um suicídio. Sequer soldados do próprio regime escaparam dessa tortura, como narrado no documentário “Soldados do Araguaia”.

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LIVRO INFÂNCIA ROUBADA

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Em 2014 a Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo lançou o livro “Infância Roubada” que se encontra disponível para download. Nele, são narradas histórias de crianças afetadas pela Ditatura, seja pela prisão, tortura ou morte de seus país. A história daquele período é resgatada por meio dos olhares infantis, daqueles que não tinham condições de compreender o que estava acontecendo, não só em matéria política, mas dentro de sua própria casa. Crianças estas, que sequer haviam escolhido um lado, mas sofreram as consequências do regime autoritário e cujos traumas ainda perduram. Não há como compreender que isso foi apenas um “probleminha” daquele período. Devemos sempre lançar luz para isso.

Thomas Hobbes, um dos primeiros contratualistas – que não era nenhum democrata – escreveu em seu Leviatã que a única função do Estado seria garantir a segurança dos cidadãos, a qual seria impossível num estado de natureza onde todos seriam selvagens e desconfiados uns dos outros. Este Estado, soberano, seria deslegitimado na hipótese de não garantir a ordem ou atentar contra a segurança dos seus cidadãos, pois estes jamais perderiam o seu direito primordial a vida.

Sua obra foi publicada em 1651, mas ainda hoje há quem diga que seria legítimo ao governo atentar contra os indivíduos a ele submetidos. Além falta de compaixão, que busca justificar atrocidades cometidas contra semelhantes, há também falta compreensão do que é a política, o Estado e suas finalidades, naqueles que defendem o uso de tortura pelo poder público.

Em 15 de março de 1973, Alexandre Vannuchi Leme, estudante do curso de geologia da USP (aprovado em primeiro lugar no vestibular), foi visto pela última vez no campus da universidade. No dia seguinte, foi preso pelos agentes do DOI/CODI de São Paulo. Morreu dois dias depois em decorrência das torturas a que foi submetido.

Pressionados pela repercussão da morte, a polícia declarou num primeiro momento que Alexandre teria se suicidado com uma lâmina de barbear. A inconsistência dessa alegação fez com que o governo afirmasse que a morte se deu em razão dele ter sido atropelado por um caminhão quando tentava fugir.

Dois dias depois da morte ter se tornado pública, seus pais foram informados de que o corpo de Alexandre foi enterrado numa vala comum, no cemitério de Perus, em São Paulo, como indigente. Seu corpo foi coberto com cal para esconder as marcas da tortura.

A morte de “Minhoca”, como era conhecido pelos amigos, reascendeu o espírito do movimento estudantil que convocou uma missa na catedral da Sé, a qual foi sitiada e culminou na prisão de 50 estudantes. Posteriormente, em protesto e para reorganizar o movimento, foi convocado um show de Gilberto Gil dentro da Universidade de São Paulo. Este, aconteceu no auditório da Faculdade Politécnica, em 26 de maio, um sábado.

Naquela ocasião, a canção “Cálice” foi executada pela primeira vez em público, num misto de comoção e resistência contra o regime, cujo público adere ao coro do refrão aos poucos, como se estivesse se libertando as arramas impostas pelo regime.

Não vamos deixar que nossas vozes fiquem presas novamente.

Arthur Spada

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A versão de Cálice, gravava no show da USP, pode ser ouvida abaixo: