A dicotomia no processo de judicialização da saúde

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“A saúde é um direito de todos e dever do Estado”.

Eu sempre gosto de me lembrar do artigo 196 da nossa Constituição Federal, para que não nos percamos do que de fato é um direito adquirido. 

No nosso sistema de saúde brasileiro, o SUS, temos dois grandes pilares para o estabelecimento dos princípios doutrinários de “equidade”, “universalidade” e “integralidade”: a Vigilância em Saúde, que compreende a vigilância epidemiológica, vigilância ambiental, vigilância de saúde do trabalhador e vigilância sanitária; e a Atenção à Saúde, organizada em Redes de Atenção, dividida em atenção primária, secundária e terciária, compreendendo o diagnóstico oportuno, tratamento, reabilitação e reinserção dos usuários que porventura tenham algum processo que comprometa a sua saúde.

A rede de atenção à saúde é definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como o conjunto de atividades relacionadas a saúde que visa o alcance de um nível “ótimo” de saúde nas populações, garante a prevenção aos fatores de riscos presentes, fortalece o acolhimento humanizados dos cidadãos, principalmente daqueles em situação de vulnerabilidade, além de garantir serviços seguros e mais efetivos.

A importância do estabelecimento da Rede de Atenção à Saúde se dá pela necessidade de um atendimento integrado, em que o usuário não somente seja tratado convencionalmente, mas também seja efetivamente acompanhado/monitorado, considerando inclusive o contexto de vida deste usuário. No tocante aos níveis de atenção, a atenção primária à saúde (APS) é composta pelas Unidades Básicas de Saúde, ou Postos de Saúde, onde se configura a porta de entrada do Sistema Único de Saúde. Nesse nível de atenção são marcados exames e consultas, sendo as principais especializações a pediatria, ginecologia e medicina de família e comunidade. A atenção primária deveria reorientar o sistema de saúde e tem a capacidade, quando bem organizado, de resolver entre 80 a 90% dos problemas de saúde de uma comunidade. Os problemas não resolvidos deveriam continuar sendo acompanhados na APS em parceria com os demais níveis.

Na atenção secundária à saúde estão as Clínicas e Unidades de Pronto Atendimento, bem como Hospitais Escolas com apenas as especialidades básicas. Nesses são realizados procedimentos de intervenção bem como tratamentos a casos crônicos e agudos de doenças. É importante diferenciar que os ambulatórios especializados representam o principal ponto de cuidado desse nível. Já na atenção terciária à saúde estão os Hospitais de Grande Porte, sejam mantidos pelo estado seja pela rede privada, são realizadas manobras mais invasivas e de maior risco à vida, bem como são realizadas condutas de manutenção dos sinais vitais, como suporte básico à vida. 

Tendo conhecimento desta estrutura, conseguimos perceber que, no quesito saúde, a nossa população deveria ser bem assistida e que a grande maioria dos problemas são de fato resolvidos. Enfatizo “a grande maioria dos problemas”, porque este será um dos temas abordados nesta coluna. 

Para garantir o correto funcionamento do nosso, ou de qualquer outro sistema de saúde, é fundamental a realização do planejamento orçamentário para que os recursos sejam melhor aproveitados e que possam atender as demandas prioritárias, evitando os gastos desnecessários. É preciso trabalhar com a realidade de que os nossos recursos são limitados, entretanto a nossa demanda em termos de saúde é ilimitada. 

Visando a organização financeira da saúde no país, o artigo 165 da Constituição Federal aborda todos os instrumentos de planejamento do país: o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). No caso específico da área da saúde, os instrumentos utilizados para o planejamento são o Plano Estadual de Saúde (PES), a Programação Anual de Saúde (PAS) e Relatórios de Gestão. Todos esses instrumentos são base para a construção dos planos de saúde, elaborados em consonância com a programação política de saúde e encaminhados aos Conselhos de Saúde para aprovação (art. 36, §2o da Lei Complementar 141, de 13 de janeiro de 2012). 

Então vejamos, temos um sistema de saúde público, universal, equitativo e integrativo para a resolução de todos (ou quase todos) os problemas de saúde da população. O seu planejamento orçamentário deve estar em consonância com a programação política e deve ser aprovado pelos Conselhos de Saúde, que são “instâncias colegiadas, deliberativas e constantes do SUS, composta por representantes dos segmentos de usuários, trabalhadores, gestores do SUS e prestadores de serviços em saúde”. Considerando tudo isso, o que poderia dar errado?

Quando escrevi acima que iria enfatizar o termo “a grande maioria dos problemas” é porque parte dos problemas de saúde da população, aqueles de menor casuística, muitas vezes não são contemplados em nosso sistema. E é esse o ponto especificamente que justificaria a necessidade de buscar o direito previsto em constituição para o acesso à saúde. Essa busca impacta diretamente no planejamento orçamentário que é feito de maneira tão cautelosa pelos profissionais de saúde. Doenças autoimunes e alergias alimentares, por exemplo, são doenças que outrora não eram tão evidenciadas nos serviços de saúde, mas que nitidamente estão incidindo a cada ano. Para estas doenças que são menos frequentes, a disponibilidade de medicamentos ou apoio alimentar não são em sua totalidade previstos, fazendo com que as pessoas lancem mão do processo de judicialização. O direito à saúde a partir da justiça.

A discussão a cerca do impacto da judicialização da saúde é recente, entretanto a cada ano observa-se aumento no número de ações judiciais e, dessa forma, aumento no quantitativo de gastos não previstos. Historicamente a maioria das ações tem como base o fornecimento de medicamentos, e isto pode ser bem evidenciado no início do século XXI, com as ações impetradas por paciente com AIDS contra o SUS, com o objetivo de acesso aos medicamentos antirretrovirais.

Chagas (2018) fez uma avaliação do impacto gastos com a judicialização da saúde na execução orçamentária no Distrito Federal entre 2013 e 2017, e verificou que as ações se centravam na aquisição de medicamentos e prestação de serviços de exames e procedimentos. Foram relatadas também ações judiciais envolvendo solicitação de próteses ortopédicas, bem como leitos em UTI.

Em São Paulo, em 2007 foram analisadas 170 ações judiciais das quais mensurou-se um gasto total de 876 mil reais, considerando somente itens que não fazem parte da relação municipal de medicamentos essenciais e que a grande maioria poderia ser substituído (Vieira e Zucchi). Ainda em São Paulo, em dezembro de 2016, 51 mil ações judiciais estavam em andamento, sendo a maior parte, 65%, relacionados a provimento de medicamentos. Entretanto, 78% dos medicamentos não eram padronizados pelos SUS e 22% indicavam uma marca comercial específica (Siqueira et al., 2018). Em estudo realizado pelo Tribunal de Contas da União (2017), foi apontado que em 2015 cerca de um bilhão de reais foi gasto em ações judiciais, indicando um crescimento de 1.300% quando considerado os últimos 7 anos.

Diante do exposto, fica claro o impacto no orçamento da saúde em termos de judicialização, principalmente quando trata-se de solicitações que não seguem as diretrizes do SUS. Entretanto, em casos específicos de desassistência, o que fazer para assegurar o nosso direito à saúde? Deixo este questionamento a vocês.

Rafaella Albuquerque e Silva 

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Referências

CHAGAS, C.P. Os impactos do gasto com a judicialização da saúde na execução do orçamento da secretaria estadual de saúde do Distrito Federal entre 2013 e 2017. Trabalho de Conclusão de Curso do Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás apresentado como parte dos requisitos para obtenção de título de Especialista em Economia da Saúde. 2018.

MENDES, A.; MARQUES, R. M. Sobre a economia da saúde: campos de avanço e sua contribuição para a gestão da saúde pública no Brasil. In: CAMPOS, G. W. S. et al. (Orgs.). Tratado de saúde coletiva. 2. ed. rev. aum. São Paulo: Hucitec, 2012. p. 247-281. 

SIQUEIRA, Paul sue F de. A judicialização da Política Pública de Saúde nos Municípios Brasileiros: um retrato nacional. Recorte S-Codes. 2018 

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO Notícias. Aumentam os gastos públicos com judicialização da saúde. Brasília, 23 ago. 2017. Disponível em: http://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/aumentam-os-gastos-publicos-com- judicializacao-da-saude.htm. 

VIEIRA, Fabiola Sulpino; ZUCCHI, Paola. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 41, n. 2, p. 214-222, Apr. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034- 9102007000200007&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em 15. dez. 2017.