A escrita que nos move

Etats modifiés, 1992. Aquarela, grafite e esfereográfica sobre papel, 48 cm x 60,5 cm. Centre Pompidou, Paris - Foto Jean-Claude Planchet - Centre Pompidou

Etats modifiés, 1992. Aquarela, grafite e esfereográfica sobre papel, 48 cm x 60,5 cm. Centre Pompidou, Paris - Foto Jean-Claude Planchet - Centre Pompidou

Fiquei longínquos dois meses afastado da minha escrita quinzenal aqui no site. Escrita essa que tanto me ajuda a seguir gauche na vida, ademais nesse novo tempo de velhas incertezas cruéis aguçadas pela pandemia. Precisava dessa pausa. Acalmar a mente, hibernar as ideias, arrefecer as metas em banho maria.

Tem horas que precisamos parar o tempo. Ao menos o nosso.

Esse hiato me fez lembrar de uma das tantas vezes que tentei parar de escrever por vontade (im)própria, por descrença em mim, por cansaço do mundo, ou seja lá o que mais tenha provocado essa entressafra de secura íntima que deixa o prazer da escrita ínfimo e o filtro do cotidiano opaco.

Falhei miseravelmente. Um dia, dois dias… e lá estava eu inquieto, sedento à procura de um papel e uma caneta para despejar o que não cabia na cabeça, o que ardia no peito, o que definhava na falta de coragem.   

 Assim como tem pessoas que a gente (não devo ser o único) segue no instagram e curtimos a postagem sem precisar registrar a imagem na íntegra ou ler a legenda até as hashtags finais, tem escritores e escritoras que lemos a obra às cegas, sem precisar de uma sinopse pra resumir o que encontraremos pelo caminho.

Entre eles e elas, Aline Bei. Me encanta sua forma de narrar e compartilhar o movimento embriagante das palavras e dos mais díspares sentimentos que as dão vida. A forma sempre está a serviço da história que ela conta e não ao contrário.

 Em Pequena coreografia do adeus, sua mais recente publicação, ela consegue rasgar com ainda mais profundidade e beleza as entranhas das personagens de uma forma particular e pública na mesma intensidade, e nos conduzir pelas diferentes (re)descobertas de cada experiência, cada relação.

Júlia Terra, a jovem escritora protagonista, representa a corporeidade poética do texto que não se limita ao corpo e faz do tempo e das pessoas a partitura que rege a dança da vida. Seu encontro com a escrita, de alguma forma, também é o encontro que nós escritores e escritoras temos com o espelho da nossa identidade

 Recentemente, assisti a mais uma excelente entrevista da Conceição Evaristo. No centro do “Roda Viva”, ainda que projetada na frieza tecnológica de um telão, sua serena força emanava ao responder cada pergunta.

Sua fala acalma e provoca numa dialética que nos lembra a importância de ouvir dentro e ao redor (a si e ao outro).

A escuta precede a escrita. Escutá-la me ensina a ter mais consciência e respeito pelas palavras que saem de mim. Sua escrevivência é uma aula de literatura com alma, uma escrita que não se asfixia num academicismo boçal ou num rebuscamento de superfície estética. Os traços da sua oralidade dão contornos densos e genuínos a cada obra.

E é no poder da fala a nascente da sua escrita e as raízes da nossa experiência como leitor/leitora.

Tenho aprendido - na prática - que escrever não é aquele ritual de sentar, olhar para a tela em branco e sentir o toque do Espírito Santo da inspiração. É ser tomado em lugares e momentos mais improváveis por um ímpeto, uma ideia que fisga a atenção, uma imagem pronta e bem delineada que sobrepõe àquela que está no seu pensamento, e quando você vê é aquilo.

A escrita é cotidiana, está à espreita, esperando uma ponta solta para, como um ímã, se agarrar e fazer com que a história se construa com suas próprias pernas. As personagens que criamos caminham ao nosso lado o tempo todo.

O cérebro só dá a ideia uma vez, por isso não dá pra deixar passar. É raio. É água. É oportunidade. Quando vai e não fica, pode até voltar, mas ninguém será mais o mesmo. No bloco de notas da tela ou no velho e bom caderninho, o registro é necessário. Palavra. Fragmento. Lampejo.

Nós, escritores e escritoras, escrevemos 24h por dia. Sentinela da profana palavra. Agora entendo Clarice Lispector ao dizer que quando não escreve ela está morta. Sim, não escrever para muitos de nós, é uma experiência de morte terrena. A escrita é nosso ar.

Nos momentos de maior rarefeição é ela que nos mantém em movimento. No livro Zen na arte da escrita, minha atual leitura, Ray Bradbury diz que a literatura pode surgir de vários estímulos, se você permitir que a voz da Musa cante aos seus ouvidos. Não sou escritor de uma só musa, só aqui já revelei três, e mesmo quando paraliso diante a realidade, elas continuam sussurrando.

Como o canto da sereia que me faz dançar e desiste de dar a-deus (qual deles?). 

Felipe Ferreira

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