A virada da paz

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No dia do meu aniversário de 18 anos, fui surpreendido por uma frase de meu tio:

“AS DATAS E TRANSFORMAÇÕES VERDADEIRAS SÃO MARCOS INTERNOS E NÃO EXTERNOS”.

Um balde de água fria, como tantos que ele me destinou ao longo da vida. No princípio, não entendi muito bem. Então nada iria mudar dali para frente? Maioridade, liberdades e responsabilidades se confundiam no meu peito excitado para desbravar o mundo, e isso era apenas um marco externo? 

Com o tempo fui percebendo o que ele queria dizer. Passamos o ano soterrados por datas comemorativas: marcos externos. Algumas são importantes para lembrarmos de fatos que queremos celebrar, como por exemplo, o aniversário: vencemos mais um ano vivos. Outras são fundamentais para não deixarmos que se repitam, como a recente memória dos 51 anos do AI-5. E outras são francamente comerciais, pois mais do que lembrar de pessoas importantes, são estímulos para comprar, comprar, comprar...

Outra forma de entender a água fria é pensarmos, por exemplo, na data em que terminou nossa última relação amorosa. Se no dia X concordamos que estávamos separados, não foi naquele dia que o amor acabou igualmente para os dois. Há sempre um amor que dura mais. Os amores terminam em datas internas, discordantes das datas externas.

Dessa maneira, fazer 18 anos não significa atingir a maturidade instantaneamente. Há quem chegue aos 40, 50, 60 sem entender que, para viver em sociedade, é preciso respeitar a existência do outro. E respeitar do jeito que ele quiser ser. 

Em relação ao reveillón, buscamos os melhores desejos para quem amamos e realimentamos a esperança de que o próximo ano será melhor. Para que isso realmente aconteça, é preciso transformar o marco externo em marco interno também. Afinal, a virada de ano é o dia da fraternidade universal. Por isso, abraçamos o outro. Não é dia de fazer “arminha” com os dedos. Nem de festejar a necropolítica ou a intolerância que avança pelo país a passos largos.

Para o ano ser realmente novo, a fraternidade não pode desaparecer no dia 2 de janeiro. Ou assim que acabar a ressaca, no próprio dia primeiro. É preciso mudar internamente. Mudar rumo à paz. Como também é preciso sair da frente para que novos protagonistas assumam seus lugares. 

Junto com o conservadorismo que saiu violentamente do armário, nos últimos anos pudemos festejar a grande diversidade que também ganhou força no país. Não podemos mais nos referir à gênero, cor de pele, orientação sexual da mesma maneira que nos anos velhos. Não somos mais todos brancos, heterossexuais e cis-gêneros. 

Na política, contrariando o padrão de séculos de poder, finalmente há representantes mulheres, indígenas, negros, gays, trans, pessoas com deficiência. Ainda poucos em relação ao ideal, mas há. Fraternidade é entender que essas pessoas são tão cidadãos quanto qualquer um. E, por isso, merecem representação. Merecem espaço, merecem respeito. O Brasil só ganha com isso.

Nesta última semana, ainda em 2019, enquanto aguardava numa sala de espera no aeroporto de São Paulo, ouvi um cidadão branco bradando contra “os comunistas”, após anúncio da grosseria do presidente contra Paulo Freire. Ele cumpria todos os pré-requisitos do estereótipo dos antigos-coronéis-donos-de-tudo. Dizia que “agora as coisas mudaram, pois esses aí da esquerda serão recebidos à bala onde estiverem”.  

Eu estava lendo Hilda Hilst e entendi que o brado retumbante era endereçado a mim. Segui dedicado à Hilda, enquanto presenciava a submissão de sua esposa que o seguia limpando os restos de comida que o “coronel” ia deixando para trás nos bancos ou pelo chão mesmo. 

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Que no ano novo, pessoas como esse cidadão, possam entender que a diversidade é o bem maior de uma sociedade. E que sua esposa descubra que não é um apêndice da grosseria do marido. E, sim, uma pessoa com potencial para ser protagonista da própria vida.

Enfim, que o marco externo da virada de ano reverbere internamente nos brasileiros para que, em 2020, a paz e a diversidade ganhem mais espaço neste país. 

Renato Farias

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