A vulnerabilidade na saúde indígena: o que precisamos entender para alcançar a equidade?
TALVEZ SEJA SENSO COMUM QUE AS MUDANÇAS REALIZADAS NESTE INÍCIO DE GOVERNO NÃO TENHAM SIDO BEM RECEBIDAS PELA GRANDE MASSA DA POPULAÇÃO, PROVOCANDO DESCONTENTO E DISCUSSÕES ACERCA DOS “AJUSTES” PROMOVIDOS PELO NOVO GOVERNO.
Os termos propostos para a reforma da previdência, o desmonte no âmbito do meio ambiente (com o enfraquecimento do IBAMA e ICMBio), a liberação de inúmeros agrotóxicos, a censura jornalística evidenciada pela exclusão de tradicionais jornais e canais de comunicação, a infeliz fala do presidente quanto a disponibilidade da mulher brasileira ao turismo sexual, e, recentemente, o corte orçamentário nas universidades federais são exemplos que justificam a revolta por parte dos brasileiros.
O enfraquecimento de políticas públicas voltadas para melhoria na qualidade de vida de grupos considerados vulneráveis, também pode ser evidenciada. Neste grupo, fatalmente estão as comunidades indígenas, as quais desde o início do governo estão sofrendo retaliações no âmbito organizacional, principalmente. Um exemplo disso foi a transferência da responsabilidade de identificação, demarcação e registro de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) durante os quatro primeiros meses deste ano.
No âmbito da saúde, obviamente alterações estruturais também estão previstas. Foi sugerido que a Secretaria de Saúde Indígena (SESAI), que coordena tanto a vigilância como a assistência a saúde nestas comunidades, fosse transformada em um departamento a ser incorporado em uma nova secretaria (Secretaria de Atenção Básica – ainda não existente). A idéia é que fossem destituídos os DSEIs (Distritos Sanitários Indígenas) e que as atividades nas terras indígenas mais próximas as áreas urbanas fossem realizadas pelos municípios e/ou estados.
De fato, as secretarias municipais auxiliam na realização de algumas atividades, incluindo vigilância epidemiológica e assistência, mas sempre acompanhadas de responsáveis técnicos lotados nos DSEIs.
ISSO PORQUE, EM TERMOS DE SAÚDE, AS COMUNIDADES INDÍGENAS SÃO POPULAÇÕES QUE NECESSARIAMENTE CARECEM DE UM OLHAR DIFERENCIADO, UMA VEZ QUE DIFERENÇAS CULTURAIS E AMBIENTAIS PODEM PREDISPOR A OCORRÊNCIA DE DOENÇAS, ALÉM DE “COMPROMETER” A REALIZAÇÃO DE ALGUMAS AÇÕES DE SAÚDE DA FORMA COMO ESTAS SÃO PROPOSTAS PARA A COMUNIDADE NÃO INDÍGENA.
Vou exemplificar utilizando uma assessoria técnica que realizei recentemente a uma reserva indígena, localizada no norte de Minas Gerais, denominada Xakriabá. Eu fui a esta visita porque poderia responder qualquer questão técnica relacionada à vigilância e controle das leishmanioses ou doença de Chagas, que são as áreas em que atuo no Ministério da Saúde, mas devo assumir que de fato pouco sabia/sei sobre a cultura e costumes dessa ou de qualquer outra comunidade indígena.
Neste sentido, o meu objetivo era não somente tentar resolver as questões a cerca das doenças infecciosas supracitadas, mas também entender um pouco mais sobre a forma de vida desta população, para caso necessário, trabalhar um pouco o princípio da equidade proposto pelo Sistema Único de Saúde. Esse princípio está relacionado diretamente com os conceitos de igualdade e justiça, e discorre sobre o atendimento aos indivíduos de acordo com as suas necessidades, buscando disponibilizar mais para quem mais precisa e menos para quem requer menos cuidado.
A comunidade Xakriabá é composta por 37 aldeias indígenas. Diferente de algumas comunidades do norte do país, em que a forma de vida dos indígenas aproxima-se do conhecimento que adquirimos na escola - de que índio vive em oca e sobrevive da caça e da pesca; no Xakriabá as casas são de alvenaria e a economia é baseada na pecuária e na agricultura de subsistência. Essa forma de vida, assemelha-se com àquela vivenciada em rural e periurbanas das cidades, levando-nos a crer erroneamente que não existe necessidade de diferenças na condução das atividades na área de saúde.
Pois bem, fui fazer um diagnóstico situacional sobre a leishmaniose visceral, devido a confirmação de 11 casos da doença em humanos em 2018. Uma das medidas utilizadas para controle desta doença é a realização de um inquérito sorológico na população canina para a retirada dos cães sororreagentes, pois estes são considerados reservatórios domésticos do parasito causador da doença.
No Xakriabá, os indígenas não se opunham à eutanásia, entretanto os cães eutanasiados não poderiam ser enterrados dentro da reserva. Eles acreditam que isso traria mau agouro a comunidade e poderia comprometer as chuvas, tão esperadas nesta região. Então, diante do posicionamento da comunidade, tivemos que avaliar como realizar o enterro dos animais fora da reserva, para garantir que a eutanásia fosse cumprida. Ou seja, a partir do posicionamento cultural deles tivemos que ajustar a medida que é recomendada nacionalmente.
Em termos ambientais, como normalmente as comunidades estão localizadas em áreas com mata nativa, a exposição aos vetores transmissores e aos reservatórios naturais de doenças podem ser mais frequentes. Muitas vezes, dependendo do tipo de construção da unidade domiciliar, não conseguimos fazer de forma adequada o controle químico residual dos insetos, que consiste na borrifação das paredes internas e externas do domicílio. É o que acontece na comunidade dos Wajãpi, reserva localizada nos estados do Pará e Amapá, em que as casas não têm parede e somente um teto de palha. Neste caso, é fundamental o estudo de outra medida coletiva ou individual para controle das doenças transmitidas por vetores.
ENTÃO, A MINHA PROVOCAÇÃO É PARA REFLETIRMOS SE, MESMO HAVENDO APARENTES SEMELHANÇAS ENTRE ALGUMAS COMUNIDADES INDÍGENAS E NÃO INDÍGENAS, PODEMOS REALMENTE USAR ESSAS SEMELHANÇAS EM DETRIMENTO DAS DIFERENÇAS? NO MEU PONTO DE VISTA, DESCONSIDERAR AS DIFERENÇAS VIOLARIA O PRINCÍPIO DA EQUIDADE, TÃO ESTIMADO PELO NOSSO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE.
Aproveito para finalizar a coluna, com um texto retirado da página do Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, que fundamenta os direitos constitucionais dos povos indígenas.
“Em um contexto de ameaças a direitos sociais sob o véu da “reintegração à sociedade”, expressão repetida com frequência pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) ao se referir aos povos indígenas, entidades e organizações da saúde e grupos de indígenas e indigenistas estão em alerta. As mudanças implantadas ou em debate são alvos de críticas, que apontam fragilização de órgãos e desmonte das políticas. No âmbito da saúde, o governo federal afirma que vai rever o modelo de atenção à saúde indígena.
A Constituição Federal de 1988 reconhece as especificidades étnicas e culturais dos povos indígenas e estabelece seus direitos sociais (artigos 231 e 232 do capítulo VIII - Dos Índios). A atenção à saúde dos povos indígenas já foi responsabilidade de diferentes órgãos, se tornando atribuição do Sistema Único de Saúde (SUS) partir de 1999, com a Lei Arouca. A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Pnaspi) foi aprovada em 2002, instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e um modelo diferenciado de atenção à saúde, baseado na ideia de Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) enquanto estratégia para garantir a essas populações o direito à saúde, de acordo com os princípios e diretrizes do SUS.
A rede de serviços do Subsistema, voltada para a superação de deficiências de cobertura, acesso e os fatores que tornam essa população mais vulnerável, leva em conta a diversidade social, cultural, geográfica, histórica e política. O subsistema está organizado em 34 DSEIs divididos estrategicamente por critérios territoriais e não necessariamente por estados. Em 2017, uma portaria instituiu um Grupo de Trabalho com a finalidade de elaborar proposta de alteração da Pnaspi. Em janeiro de 2019 o processo de revisão e discussão da política pelo GT foi prorrogado por mais 180 dias, a partir de 1º de dezembro de 2018.” (https://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/boletim/edicao/21/)
Não esqueçamos: “Ninguém solta a mão de ninguém.”
Abraço a todos,
Rafaella Albuquerque e Silva
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