Análise sobre “Colônia” & Entrevista com Gustavo Colombini
| “Colônia” e suas vozes por Gustavo Colombini.
Como bom enamorado que sou pelas letras, ao ler o título de qualquer obra - independente do gênero - eu crio uma relação investigativa entre o seu significante e o seu significado.
Com “Colônia” não foi diferente. O vocábulo por si só me apresentou um extenso leque de conceitos e intenções interpretativas.
O substantivo feminino que nomeia o monólogo e o livro do escritor Gustavo Colombini (@colombinigustavo) carrega no seu cerne etimológico 03 (três) vieses conceituais que rasuram o diagnóstico racional da loucura: o BIOLÓGICO, o POLÍTICO e o PATOLÓGICO.
Com direção de Vinicius Arneiro (@viniarneiro) e interpretação de Renato Livera (@renatolivera), o espetáculo teatral transgride nas páginas do ensaio literário da Glac Edições (@glac.edicoes) e tem na PALAVRA um recurso de linguagem polissêmico sobre o “ser louco” que é capaz de entrelaçar todas as variantes históricas e psicossociais que corroboram subjetivamente na reconstrução do paradoxo da (in)sanidade.
Na minha leitura crua, sem a experiência cênica como premissa crítica de qualquer análise comparativa, montei o quebra-cabeça proposto na sala de aula. A ruptura de ordem e de linguagem proposta nos fragmentos da narrativa, me fez convidar a voz descolonizadora dessa colônia para ecoar além palco, além página.
| “Colônia” por Gustavo Colombini.
I - É mais comum vermos obras literárias serem adaptadas para o teatro. Com "Colônia" aconteceu o caminho inverso. A dramaturgia cênica deu origem ao livro que narra todo o quebra-cabeça da montagem. Esse ensaio posterior a encenação é uma forma de estender as discussões feitas no palco? De que forma o registro por escrito da transgressão efêmera - característica do teatro - colabora para a investigação artística da linguagem e da sociedade?
Creio que esse caminho inverso é cada vez mais essencial. O processo de Colônia envolveu pesquisas que extrapolam a condição de uma transgressão efêmera. Sempre coexistiu em mim essa necessidade e vontade de desdobrar o espetáculo em outras plataformas - um livro, nesse caso. A peça é, pra mim, o desenvolvimento de um discurso heterodoxo. Variar entre as condições científicas e poéticas da palavra "colônia" - é sobretudo um trabalho de invenção discursiva. Habitar o universo da palavra no geral, é próximo, em certo sentido, da literatura. Muitas pessoas que assistiram a peça destacaram após as apresentações uma "vontade de ler" esse espetáculo. Esse fato corroborou com a vontade de concretizar esse livro. Acredito num teatro que vai um pouco além do que ele mesmo apresenta - que deixe rastros, sombras, ecos, pensamentos posteriores ao evento, questionamentos posteriores ao acontecimento, como se a experiência se prolongasse pra fora dele. Esse livro é um jeito sutil de tentar dar corpo a tudo isso que é posterior à experiência teatral. É por isso que eu acredito nessa responsabilidade (ou irresponsabilidade) de tentar registrar por escrito essa "transgressão efêmera", como você mesmo citou. É uma tentativa sobretudo de fabricar, construir, costurar conhecimentos de outras espécies. Acho que isso colabora não só pra investigação artística da linguagem, como também disponibiliza esse trabalho social que é compartilhar uma pesquisa, uma descoberta, uma invenção com o maior número de pessoas possível. Ao incluir, por exemplo, um ensaio do Patrick Pessoa, o livro ganha esse pacto de compartilhamento. O Pessoa não escreveu um texto crítico apenas - ele investigou profundamente os cantos da linguagem do texto, da encenação e aumentou as superfícies de contato com esse trabalho. Não o limitou a ser compreensível. Eu acho lindo esse texto dele - uma das aproximações literárias mais bonitas que Colônia já teve. Também fico imaginando, a título de curiosidade, como deve ser interessante esse movimento inverso que você mesmo se colocou - ler o livro sem ter visto a peça. Fico curioso como deve ser assistir a essa peça depois de ter lido esse quebra-cabeça. Deve haver alguma mudança na sua experiência com o trabalho.
II - No decorrer da leitura eu reparei que as páginas do livro não são numeradas. Há algum motivo específico para essa escolha de formatação? A não enumeração dos capítulos tem algum diálogo com a não linearidade que permeia a (des)construção de "Colônia" como espetáculo na sua forma concreta e abstrata?
Acho que essa opção aponta essa sua interpretação. Creio que pode apontar outras interpretações, mas creio que a sua é muito interessante. Lembro de discutirmos muito a ideia de fluidez desse livro - são textos para serem lidos em fluxo, talvez de uma vez só (com um pouco mais de fôlego). A não-numeração parece, na minha opinião, deixar ele menos fragmentado - já que o conteúdo dele já tem alguma fragmentação. Colônia por si mesmo é um texto não linear - os "capítulos" podem ser independentes de alguma forma. A direção do Vinicius Arneiro e a atuação do Renato Livera deram um caminho mais concreto pra essas palavras. Mesmo não-linear o espetáculo parece ter uma condição de trajetória muito clara. Essa trajetória que inventamos para a peça foi um trabalho muito difícil, mas muito prazeroso. Como se extraíssemos do texto outro texto possível pra habitar a cena.
III - "Colônia" questiona os métodos normativos da loucura que embasam seu diagnóstico como um mero estado de ordem patológica. Tirar a loucura de um prontuário pragmático e individualizado e deslocá-la para uma zona conflitante universal faz com que os conceitos fiquem menos literais e mais contextuais? Como você correlaciona o pensamento descolonizado da peça com a polissemia semântica da palavra-título da publicação e a historicidade de um Pau-Brasil como o nosso?
Creio que sim, Felipe. Esse movimento faz a loucura deixar de ser só uma invenção de linguagem pra separar o medo social e da política humana. O espetáculo, como um todo, parece pesquisar essa atribuição da loucura, as normas sociais que a cercam. O próprio "Hospital" Colônia, um "manicômio", mantinha encarcerados milhares de pessoas que não tinham nenhum diagnóstico patológico. Isso vem discutir outro patamar da loucura que é o encaixe ou o desencaixe social e político. As regras de comunidades, os limites do aceitável. A própria palavra "louco" remete não só a pessoas cujo raciocínio denota alterações patológicas das faculdades mentais, mas também, por extensão, pessoas cujos atos e palavras parecem "extravagantes", "desarrazoados". Isso está no nosso dicionário. E os conceitos das palavras parecem verdadeiras instituições pra criação do nosso vocabulário. As palavras, nesse caso individualmente, são muito complexas, possuem raízes muito fundas, camadas e camadas de problemas e soluções. Não à toa o português incorporou palavras de raízes racistas, por exemplo. As palavras são cheias de segredos. Há de se tomar cuidado com elas, há de se ter cuidado com o uso delas. Nesse sentido, essa ideia de descolonização vem fundo na nossa tentativa de estudar a palavra "colônia". De rasgar ela, ver o que ela esconde, pra onde ela vai, onde nasceu, quem fala ela, como se fala sobre ela, quando falamos nela, por que usamos ela. Nós somos responsáveis pela nossa linguagem, ela é nossa forma de comunicação. Escolher uma palavra é escolher um universo inteiro. Os discursos contemporâneos individuais sofrem desse detalhe. Creio que é um momento especial de reavaliar nossas palavras, pensar sobre elas. Ao escolher especificamente a palavra "colônia" é possível investigar que dela vem um terremoto, um soco, uma beleza escondida, uma descarga de muitas informações. É possível entender, talvez, que uma só palavra pode nos ajudar a entender a trajetória de um país inteiro - seus hábitos, suas feridas, suas falhas, seus horrores. É possível traçar correlações dela com outras palavras - fazer com que a palavra "colônia", por exemplo, esteja próxima da palavra "amor", assim como está próxima da palavra "morte", da palavra "exploração". É por isso que eu acredito que essa história de "descolonizar o pensamento" passa sobretudo pela descolonização das palavras. Elas são células que guardam toda uma possível revolução escondida.
Felipe Ferreira
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