As raízes identitárias do Brasil em “Torto Arado”
Não se julga um livro pela capa, mas é plenamente possível ser atraído por ela. “Torto Arado”, recente trabalho do escritor baiano Itamar Vieira Junior, despertou minha atenção ao primeiro olhar pela beleza da sua imagem. A composição estética da espada de ogum (ou Espada-de-são-jorge ou Espada-de-santa-bárbara), as figuras femininas em posição de poder e seu entrelaçar de mãos abre um portal semiótico que nos permite revisitar o passado e compreender melhor o presente.
Tateei o que estaria por trás da vivacidade das cores, da imponente representação, e ao ler a sinopse senti uma identificação imediata que não se restringiu a questões geográficas, climáticas ou culturais. Me reconheci naquelas personagens e naquele tempo que se revelaram tão familiares. Como numa regressão fiz perguntas que, soltas na irrelevância subjetiva de mais um capítulo, podem ficar pelo caminho.
De onde eu vim?
Quem me permitiu chegar até aqui?
O que elxs foram pra eu ser o que sou?
A essência identitária marca os dedos a cada página. Nossa imaginação materializa a palavra sem o véu romântico e democrático das narrativas canônicas. A resistência garante a sobrevivência e adentra a mata no fio de corte abrindo caminhos para que a próxima linhagem consiga caminhar menos oprimida e, principalmente, com mais consciência da sua importância e do seu valor. Conhecer a história que insistem apagar e a partir dela se orgulhar do legado de luta deixada por nossos ancestrais é fundamental para entendermos o sentido da nossa existência, a importância das nossas ações e para atentarmos aos caminhos que não podemos negar.
Lado a lado com o realismo simbólico e o misticismo das forças da natureza, a narrativa reconta o Brasil com minúcia, dissecando a estrutura de poder dominante que dita leis ao bel prazer de interesses e privilégios da benevolência de seus algozes. As demandas contemporâneas têm suas raízes fincadas nas mazelas e injustiças de outrora. Um solo açoitado e marcado pela delicadeza de quem semeia e resiste.
A chama que arde contra o racismo, a desigualdade social, a intolerância religiosa, é a herança viva dos nossos antepassados. Avós, bisavós, as matriarcas que carregaram suas famílias no lombo, os curandeiros (como Zeca Chapéu Grande) que aplacaram males do corpo, do espírito, e juntos, combateram a colonização sangrenta com resiliência e sabedoria para que seu povo não fosse silenciado e invisibilizado por um projeto de nação eurocêntrico e desumano.
Corte dilacera e une
Silêncio emudece palavras e esgarça emoções
Partidas sangram peito, liberam almas
O renunciar da escolha guia horizontes, mas não foge do destino
“Torto Arado” apresenta o tradicionalmente não contado. A história do lugar de quem a fez - mas teve o direito de escrevê-la usurpado -, das páginas rasgada dos livros, da oralidade amordaçada nas salas de aula. Sua narrativa protagonizada por mulheres negras, líderes e quilombolas transcende a literatura e ramifica o lirismo nas sensações provocadas pelo estranhamento e pelo incômodo de ver naquele sertão, no semblante bruto e expressivo de cada trabalhador, um Brasil diferente do “descoberto”. No mesmo compasso que o real parece distante, nos é íntimo. O não pertencimento nos coloca frente a frente a vivência dos nossos e nos faz questionar a legitimidade do “eu”.
A trajetória de cada personagem fortalece o elo que conecta suas famílias e deságua na união coletiva de um povo que comunga da mesma dor e esperança. Cada corpo açoitado, cada sangue derramado, cada sonho roubado, cada direito negado é um grito de liberdade que ecoa mata adentro e sussurra ao pé do ouvido de quem fica e continuará a romper as correntes de um sistema corrompido e assassino.
Conforme eu conhecia as origens de Donana nutria um respeito, uma admiração e um afeto como se fosse um dos seus filhos e netos e tivéssemos partilhado do mesmo riso, da mesma lágrima. A tragédia que transforma a vida de Bibiana e Belonísia carrega consigo o renascimento pós-morte. Entre mágoas e silêncios os destinos das irmãs se bifurcam para depois se atravessarem. O encontro de cada personagem com sua própria verdade tece o (re)descobrimento familiar e coletivo de laços indesatáveis. Como se o trauma que inunda o leito de um refletisse na correnteza do outro para o que um dia foi, possa ser amanhã, ainda que sejam outras águas.
Mergulhar nos encantos de Água Negra no Brasil atual, onde antigas negações e o saudosismo escravocrata insistem sair das sombras, é um aprendizado sobre quem fomos/somos que reencontra a ancestralidade adormecida pela posse vil do cabresto e renova a esperança por uma Mãe-Terra mais gentil, humana e justa com quem a fez.
Felipe Ferreira
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