Doenças em eliminação: o que falta para eliminá-las?
Antes de começar a discutir sobre as estratégias que teríamos disponíveis para auxiliar o processo de eliminação de uma doença, precisamos de fato saber o que significa o termo “eliminação”. Existe uma diferença conceitual entre “eliminação” e “erradicação”, apesar de muitas pessoas utilizarem estas palavras como sinônimos.
“Eliminação” refere-se ao fato de não termos notificados casos de uma doença durante um período de 10 anos, entretanto existe a necessidade de manutenção das medidas de prevenção e de controle. Isso porque, considerando que a doença ocorra ainda em outros países que não o nosso, o agente etiológico poderia ser reintroduzido no país.
"Erradicação” refere-se aquelas doenças em que, no mundo, não temos registro de casos há muitos anos e, dessa forma, não há a necessidade de manter as estratégias de prevenção e controle localmente, já que não há perigo de reintrodução do agente etiológico. Um exemplo clássico de doença erradicada é a varíola, em que atualmente não há a necessidade da realização da vacinação.
O nosso sistema de saúde tem por objetivo o diagnóstico oportuno e tratamento adequados dos casos, bem como na redução da incidência e letalidade das doenças.
Neste sentido, para cada doença em especial são traçadas estratégias de prevenção e controle considerando aspectos como: sua cadeia de transmissão, o que se tem disponível em termos de evidências científicas e a situação social/cultural da população.
Vou tentar deixar essa fala um pouco mais clara. Quando falei sobre a cadeia de transmissão das doenças é porque entende-se que, se identificarmos todos os pontos que sustentam a transmissão, poderíamos avaliar como tornar a interação entre estes pontos menos frequente e efetiva. Se tivermos conhecimento sobre a porta de entrada de um agente causador de uma doença, poderíamos estabelecer uma forma de interrupção desta entrada. Por exemplo, como sabemos que a dengue é transmitida pela picada de mosquitos infectados pelo vírus, se reduzirmos o contato do mosquito com as pessoas, teremos êxito na redução dos casos da doença. É por esse motivo que existe a busca ativa de focos de Aedes aegypti pelos agentes comunitários de saúde (ACS) e agentes de controle de endemias (ACEs).
Um outro ponto extremamente importante é considerarmos as questões sociais relacionadas à efetividade da adoção de medidas de prevenção e controle de uma doença. Por exemplo, no Brasil, uma das medidas de prevenção da transmissão da sífilis em recém-nascidos seria a interrupção temporária da amamentação caso as mães sejam positivas para a doença e possuam lesões primárias ou secundárias nas aréolas e/ou mamilo. Esta medida, entretanto, não é adotada no continente Africano, principalmente quando se trata dos países do norte da África, devido ao fato de que, se houver a interrupção da amamentação, as crianças possivelmente morrerão por desnutrição. Então lá, é preferível que as crianças contraiam a sífilis e sejam posteriormente tratadas.
Dessa forma, podemos começar a entender que são muitos os fatores que devem ser considerados ao estabelecermos uma estratégia de prevenção e controle efetiva. Não é fácil traçarmos estratégias nacionais (ou internacionais) de prevenção e controle de doenças, porque muitas vezes existe uma complexa rede de fatores causais, sendo estes biológicos ou sociais, que sustentam a doença em si.
Quando se trata de doenças infecciosas, se considerarmos que os primeiros indícios de descoberta dos micro-organismos datam do século XVII, poderíamos pensar que na atualidade, quatro séculos após, com o avanço das áreas de ciências biológicas e da saúde, estas doenças deveriam estar controladas. Infelizmente, o que visualizamos na verdade é a persistência de algumas doenças infecciosas, bem como o ressurgimento de outras que acreditava-se estar superadas, como a febre amarela e o sarampo. E se pegarmos estas duas doenças como exemplo, o que faltaria para eliminá-las?
A febre amarela e o sarampo são doenças imunopreveníveis, ou seja, para estas doenças é preconizada a vacinação, considerada uma das estratégias mais eficazes disponíveis para o controle de uma doença, pois ela induz uma imunidade ativa nas pessoas vacinadas permitindo que elas desenvolvam uma resposta imune adequada ao agente. No Brasil, estudos de avaliação de efetividade da vacinação já demonstraram o controle de duas importantes doenças - a polimiolite e a raiva - mediante a utilização desta estratégia.
Mas se eu tenho disponível essa ferramenta, o que está dando errado?
Por que no Brasil recentemente vivenciamos uma epidemia de febre amarela e sarampo?
O primeiro ponto a ser levantado é se foi atingida a cobertura vacinal indicada. A cobertura vacinal é calculada a partir da taxa de reprodução de uma doença. Esta é conceituada como sendo o número de casos originados a partir do caso índice. Em se tratando de uma doença contagiosa com taxa de reprodução de 10 por exemplo, um caso desta doença pode originar até 10 novos casos. Para afirmar que uma doença está controlada, a sua taxa de reprodução tem que ser menor que 1. Então, no caso do exemplo supracitado, para que a taxa de reprodução seja menor que 1, teríamos que vacinar pelo menos 90% da população. Os 10% da população que não forem vacinados estariam imunizados pelo que chamamos de efeito rebanho ou imunidade rebanho, pois para que uma doença seja transmitida de pessoa a pessoa é fundamental que haja o encontro de uma pessoa infectada com uma pessoa suscetível. Se a cobertura vacinal for atingida, a possibilidade do encontro é reduzida e, portanto, praticamente todas as pessoas estariam protegidas. O problema é que muitas vezes a cobertura vacinal não é atingida nas áreas com recomendação de vacinas, e por isso, temos formados bolsões de suscetibilidade que ocasionam o aumento dos casos das doenças.
Mas o que justificaria a queda na cobertura vacinal?
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), existem três fatores mais fortemente relacionados a queda na cobertura vacinal. Um deles seria o sucesso do programa de imunizações, o que reduziu ao longo dos anos os casos de algumas doenças, mas sem de fato erradicá-las, permitindo que as pessoas tivessem a falsa sensação de que não precisariam mais se vacinar. Principalmente os jovens, que não teriam noção do risco de transmissão da doença, já que não é comum o aparecimento de casos. Um exemplo meu diretamente, é que quando falo em sala de aula sobre os tipos de imunizações (ativa ou passiva; artificial ou natural) eu costumo perguntar quem já teve alguma doença imunoprevenível, como o sarampo. Normalmente ninguém levanta a mão. Eu tive sarampo, mas praticamente ninguém da geração após a minha, geração Z, teve, até a epidemia de 2018/2019 que culminou na perda do certificado do Brasil de eliminação do sarampo.
O segundo ponto relacionado refere-se à falta de acesso dos pais aos serviços de saúde. E este ponto está relacionado principalmente à falta de capilarização da oferta do serviço nos municípios, mas também com a dificuldade no repasse de informações a cerca dos benefícios e organização das campanhas de vacinação.
O último fator é referente aos movimentos contrários à vacinação. Ao longo dos anos, o movimento antivacina vem crescendo no país, estimulando cada vez mais as pessoas a não aderirem a medida. A justificativa para a não vacinação mais comumente utilizada por este grupo é que as vacinas desencadeiam o autismo. O grupo utiliza como base um estudo sem comprovação científica que em diversas ocasiões foi desqualificado. Estudo posterior realizado na Dinamarca, em que mais de cinco milhões de pessoas foram avaliadas, a incidência do autismo foi de 129,7 para cada 100.000 habitantes. O estudo ainda demonstrou não haver nenhuma diferença entre grupos de crianças vacinadas e não vacinadas e o autismo, o que deixa em descrédito a ideia de causalidade entre a vacinação e o autismo.
A reflexão que eu gostaria de promover é que, quando deixamos de aderir a uma medida de prevenção achando que primariamente ela é individual, precisamos refletir se esta decisão individual não impactará diretamente na saúde do coletivo. No caso específico da vacinação, que foi a única medida de prevenção trabalhada nessa coluna, pode-se concluir que a redução da cobertura vacinal pode impactar sim na proteção coletiva proporcionada por esta medida.
Eu finalizo trazendo o depoimento de um amigo querido, que teve poliomielite na infância e que hoje batalha ativamente em prol dos direitos das pessoas com deficiência e também na manutenção da vacinação. Ele é dentista de formação e tem doutorado em medicina tropical pela UnB. Dentre outros cargos, ele foi gerente da Gestão de Imunológicos do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde.
Depoimento Ricardo Gadelha, 46 anos, portador de necessidades especiais devido a infecção pela poliomielite.
1. Quais foram os fatores limitadores na sua vida devido ao desencadeamento da poliomielite?
As limitações e as dificuldades surgiram mesmo antes de dar os primeiros passos. Comecei a andar tardiamente, aos dois anos, ao contrário das crianças da minha idade. Passei a minha primeira infância frequentando hospitais e clínicas de fisioterapia. Era uma rotina difícil, mas graças a Deus, tenho pais que muito fizeram por mim. Como as sequelas atingiram os membros inferiores, principalmente a perna esquerda, até hoje tenho dificuldades para andar, o que afeta também a coluna vertebral. A falta de acesso ainda hoje é um problema, imagine nas décadas de 1970, 1980, ... As pessoas tinham "peninha", mas sempre fui corajoso para enfrentar todos os obstáculos. Viver com um deficiência não é fácil, mas a maior limitação está na cabeça das pessoas que se dizem "normais".
2. Na sua concepção, qual a importância da vacinação?
A vacinação, assim como a amamentação, são as primeiras provas de amor que os pais devem oferecer aos filhos. Não consigo admitir um pai ou uma mãe que não vacinam o filho. As sequelas são dores que levamos para o resto da vida. Perder um filho por uma doença imunoprevenível deve ser uma culpa irreparável. Infelizmente, tive poliomielite antes dos dois meses de vida, idade para a primeira dose da vacina. A Caderneta de Vacinação dos meus dois filhos sempre esteve em dia, incluindo as vacinas da adolescência!
3. Você que já contraiu uma doença imunoprevenível, o que acha da ideia de desenvolvimento de uma imunidade natural (obtida a partir da doença)?
Se existe vacina, sou totalmente a favor da utilização desse mecanismo de proteção. Acredito ser um risco grande esperar ser exposto. Não podemos prever as futuras sequelas, inclusive a morte.
4. Quais os avanços que você acompanhou em termos de imunoprevenção enquanto trabalhou no Programa Nacional de Imunizações?
O Programa Nacional de Imunizações trabalha incansavelmente para proteger nossa população e, assim, evitar surtos e epidemias de doenças imunopreveníveis no Brasil. Está claro o avanço no aumento gradual do orçamento e na introdução de novas vacinas, ao longo dos 46 anos de existência desse programa. Infelizmente, as coberturas vacinais têm caído, tornando-se como grande desafio aumentar o número de pessoas vacinadas no nosso país. No Sistema Único de Saúde - SUS, os vacinadores têm um dos papéis mais relevantes na prevenção de sérias doenças, porém a população deve estar consciente da importância das vacinas. Vamos juntos proteger nossos brasileiros!
Rafaella Albuquerque
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