Ele, o sistema único de saúde
Preciso começar esta coluna com uma confissão: além de homem de teatro, sou sanitarista. Pós graduado em 1989 na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz. Por causa dessa dupla formação, teatro e saúde pública, em 1995, passei a fazer parte do projeto Canal Saúde, no qual sigo trabalhando até hoje, como comunicador em saúde. Conto isso, não para desfiar aqui o meu currículo, mas para falar de uma paixão que guiou meu trabalho, pensamento e afeto no último quarto de século: o SUS!
Durante esses 25 anos, entendi a complexidade de um sistema que é elogiado e cobiçado pelo mundo todo. Sabe por quê? Porque possui três princípios fundamentais:
Primeiro, ele é universal, abraça a todos. Basta estar em território brasileiro para ter direito a ser acolhido pelo sistema.
Depois, ele é integral, ou seja, está desenhado para atender desde o problema mais simples de saúde, até a mais alta complexidade.
E, como último princípio, ele busca a equidade. E esse é o princípio que mais admiro, porque explicita que é preciso tratar desigualmente os desiguais. Priorizar os mais vulneráveis. Atuar como um redutor da desigualdade social.
OK! Você pode estar pensando que de nada adianta tanta beleza teórica se, na prática, não funciona assim. Eu poderia dar duas respostas:
A primeira, tem a ver com financiamento. Para dar conta de tamanha revolução, pois até então, só tinha acesso à saúde quem tinha carteira de trabalho, seria preciso muito investimento. Mas o SUS, desde o nascimento, foi subfinanciado. Imagine se você recebesse apenas uma parte do dinheiro que precisa para gerir a sua casa. Ainda assim, você não pensaria em abandoná-la ou vendê-la e tendo que alugar outra, ficar a mercê de um proprietário que, segundo sua vontade, poderia despejá-lo a hora que bem entendesse. Mas, sim, passaria a gerir o dinheiro que tem para dar conta das prioridades. Buscaria outras formas de ganhar dinheiro para fazer novos investimentos, como melhorar a alimentação ou comprar uma geladeira melhor. Foi isso que os apaixonados pelo SUS fizeram.
Profissionais da saúde, gestores, usuários organizados, vários políticos, diversos movimentos sociais, acadêmicos, profissionais de comunicação. É grande o contingente de cidadãs e cidadãos que entenderam a força do chamado do sistema público de saúde e dedicaram suas vidas para o erguer, o expandir e o aperfeiçoar, mesmo sem as condições ideais. Assim, o SUS foi se transformando em realidade e mudando os índices de saúde do país. E essa é uma história muito bonita. Merece ser contada e conhecida por todos.
A segunda resposta pode surpreender você. O SUS funciona, sim. Primeiro, porque ele não se resume a atendimento, como somos levados a crer. A face mais visível de um sistema de saúde são os hospitais, as emergências, os postos de saúde. Mas o SUS vai muito além. Ele cuida da vacinação, dos transplantes, do controle de qualidade do que ingerimos, vestimos, usamos para a higiene pessoal e para limpar a casa. Ele produz e distribui medicamentos para tratar de inúmeras doenças crônicas, como o câncer e a aids, por exemplo. Faz pesquisas das mais simples às mais avançadas. Faz pré-natal, transplantes, acolhe pessoas com problemas de alcoolismo e adição a outras drogas. Foi fundamental para a reforma psiquiátrica que aboliu a barbárie dos manicômios e humanizou o atendimento a pessoas com demandas de saúde mental. A lista é grande, extrapola os limites desse texto. E, além de tudo isso, também atende as pessoas nos postos de saúde, hospitais e emergências. Você se surpreenderia com o número de procedimentos diários do SUS.
Agora, se você é da classe média, talvez nunca tenha precisado do “atendimento” do SUS, e, mesmo assim, usufrui dele todos os dias. E se você já foi atendido, pode contar sua experiência e surpreender quem acha que o atendimento é invariavelmente insatisfatório. As pesquisas comprovam a aprovação dos usuários. Quem o desaprova, é quem o desconhece.
Há muito o que falar do SUS. Como ele se organiza. Como se dá a sua gestão. Como funcionam os conselhos e conferências. Por que e como devemos defendê-lo. Por que o SUS sofre ameaças desde o nascimento. Como os ataques têm sido mais contundentes nos últimos anos, quando o subfinanciamento se transformou em desfinanciamento. O que foi a reforma sanitária. Quem são os grandes sanitaristas que encabeçaram todo esse movimento ao longo das últimas décadas. Enfim, vários temas que, para mim, são apaixonantes. Se você quiser, posso falar mais no próximo texto. Me sinaliza se quiser saber mais.
Afinal, em tempos de pandemia, o SUS finalmente está ganhando o status que sempre mereceu fazendo, inclusive, com que seu jaleco venha sendo vestido por pessoas que, até pouco tempo, se encarregavam do seu desmonte em nome da saúde privada.
Renato Farias
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