Eu não estou sozinho

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Na coluna passada, escrevi que quem gosta de ler nunca se sente sozinho. Entre os delicados retornos que recebi, um irmão que a vida me deu há 35 anos, lembrou-me de uma frase de Borges, ao ser perguntado sobre o que fazia em sua biblioteca, sentado, sozinho, no escuro:

“Eu não estou sozinho, estou com meus livros”...

A resposta do mestre argentino jogou-me em uma vertiginosa estrada, uma espiral literária, que começa na infância de menino quieto, às vezes até esquecido pela mãe por não manifestar barulho nenhum ao longo dia, debruçado sobre Condessa de SégurMonteiro Lobato Agatha Christie. Aprendia cedo, com esses amigos tão plurais, as delícias de ser transportado a mundos mágicos de aventuras, aprendizados e até de crimes quase insolúveis, mas sem correr nenhum risco, a não ser o de ter o meu próprio mundo expandido.

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Na fase seguinte, a adolescência, naturalmente, a atração pelos amigos proibidos: Harold RobbinsJ.M. SimmelIrwin Shaw e Sidney Sheldon. Quanto mais entendia que aquela literatura não era para mim, mais a devorava distante de quaisquer olhos que pudessem me recriminar. Além das descobertas irreproduzíveis aqui, aprendi com meus novos amigos que quase tudo que é proibido, o é por que causa prazer. E também que somos uma sociedade que não sabe lidar com as delícias do prazer, nem com os riscos de seus excessos, optando pelo caminho mais burro e mais violento: proibir!

No passo seguinte, o maior de todos os amigos. Aquele que, anos mais tarde, viria a encontrar pessoalmente e transformaria minha arte em potência: Caio Fernando Abreu, sua pedra de Calcutá, seu ovo apunhalado e seus morangos mofados. Com esse amigo mais-do-que-especial, entendi a importância da identidade. A suprema necessidade de lutarmos com todas as forças, caso necessário, para sermos quem somos. E, se isso soa algo fácil de conseguir para você, das duas uma: ou você goza do privilégio de se encaixar nos padrões de poder que determinam quem se pode ser ou não, ou ainda não entendeu quem realmente é. Para entender quem realmente somos,  precisamos desvendar dois caminhos: a busca por nossos antepassados e a coragem de ouvir os próprios desejos. Para os antepassados, contei com o auxílio luxuoso do tempo e do vento de Érico Veríssimo. Para a escuta corajosa da trilha dos meus desejos, a delicada companhia de Caio pela noite

E, assim, um mundo novo teve início, as amizades se multiplicaram e havia chegado a hora de dar uma volta ao mundo. Na Colômbia, Gabriel García Marquez alertava para a morte anunciada de Santiago Nasar. Em Portugal, Saramago me tirou da cegueira, a ponto de finalmente emprestar humanidade a Jesus Cristo. Na Itália, Ítalo Calvino surgiu pelas mãos de outra irmã que a vida me deu. Esta, há ainda mais tempo, 42 anos. Com Calvino, a própria literatura brincava consigo mesmo, como aquele viajante numa noite de inverno. Na Inglaterra, o genial Ian McWean, que conheci na praia, deixou-me enclausurado em sua literatura. Na França, descobri que todos os homens são mortais com Simone de Beuavoir. Na Bélgica, a inigualável Marguerite Yourcenar e a explosiva mistura de amor e poder em seu clássico Memórias de Adriano. Na Rússia, os subterrâneos do humano com Dostoievski. E tantos outros.

Pelo Brasil, a viagem foi ainda mais surpreendente. Mais potente que as aulas de história foram as histórias do menino de engenho, o paraibano José Lins do Rego. Ou a percepção do quanto o estado brasileiro é violento com os sertões de Euclides da Cunha. A viagem para a Bahia com Jorge Amado e seus Capitães de Areia. Para Minas, com Ivan Ângelo e sua festa. Para Curitiba e seus dias nublados com Luiz Felipe Leprevost. A volta para o Rio Grande do Sul, e para essa coisa brilhante que é a chuva com Cíntia Moscovich. E aquela outra potente e inesperada viagem: para o interior de nós mesmos, guiados pelas mãos e pelo coração selvagem de ClariceLispector

Foi então que um encontro revolucionário ampliou ainda mais o que já parecia imenso: a acolhida e a bússola para um mundo ainda desconhecido por aquele menino branco nascido no interior do Rio Grande do Sul. A professora Conceição Evaristo, suas aulas e sua literatura. Desse encontro permeado por afetos e letras, brotou uma nova compreensão racional e emocional de quem sou, em que mundo vivemos e quem conta as histórias que lemos. Mas deixo que a espiral revisite esses novos amigos na próxima coluna.

Apenas gostaria de encerrar esta pequena viagem, tão emocionada quanto incompleta, com uma outra pequena história. Estava eu esta semana no metrô lotado de Copacabana, conversando com um amigo recente que há alguns anos mudou-se com a família para Lisboa e, por isso, cometeu a ousadia de encerrar todos seus amigos literários num único aparelho eletrônico. Eu, que ainda respeito a morada de cada amigo, onde sou convidado a entrar folheando página por página de uma experiência tátil, mal disfarcei o horror daquela relação virtual a que meu novo amigo se sujeitou em nome da modernidade e da praticidade. Devo mesmo ter disfarçado mal, pois ele não tardou a exclamar:

“Mas não me desfiz dos Borges. Estes estão todos comigo. Afinal não ia me separar do meu grande amigo!”

Ufa. Mais uma vez o mestre argentino me trouxe esperança para este mundo árido quando sem livros ou sem literatura.    

P.S.: Quem sabe em outros momentos, nossa espiral literária possa visitar também os poetas e dramaturgos, pois estes vencem a solidão com doses inigualáveis de lirismo e ludicidade. 

Renato Farias

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