EU NÃO SOU PORQUE VOCÊS SÃO. EU SOU PORQUE NÓS SOMOS!
Eu não devia, mas confesso que ainda me surpreendo com a capacidade da branquitude de inverter o jogo e de vítima, nos fazer algozes. E aliado a isso ainda vem muito fortemente a síndrome de Princesa Isabel, se colocando no lugar de nossos redentores.
Não costumo acompanhar reality como BBB (e não digo isso para me defender ou vender uma ideia intelectualóide até porque nem é isso que define a capacidade intelectual de ninguém. Digo que não acompanho porque não mesmo), mas sempre que tem uma presença negra, principalmente que chame alguma atenção para o bem ou para o mal, me atenho um pouco mais a essa figura e volta e meia dou uma “espiadinha”. Dessa vez temos duas que tem chamado a atenção: Thelma e Babu. Não vou me estender explicando a trajetória dos dois e nem mergulhando em juízo de valor sobre as “tretas” armadas ou não por eles dentro do programa porque desconheço e porque não vem ao caso. Mas dentre tantas coisas que ouvi falar e outras que procurei saber, a tão almejada liderança conquistada (e que isso fique bem claro: foi CONQUISTADA e não cedida) pela Thelma, me chamou muita a atenção.
Acompanhei a parte final da prova durante a madrugada de insônia imposta por essa quarentena terrível que vivemos, e vi duas mulheres, uma branca e uma negra, disputando uma prova de resistência. Eu não sei qual a história dessas duas dentro do programa. Vi algumas vezes com um enorme incomodo uma mulher negra grudada em um monte de meninas brancas que pareciam mantê-la por perto por caridade. E aquilo me incomodava muito. Me dava a impressão de estar tentando ser aceita se fazendo de igual e sendo sempre preterida. Mas ok.
Podia estar sendo precipitada no meu julgamento já que não tenho condições de avaliar bem por não acompanhar. No entanto, naquele momento, os papeis se indefiniram e tive a impressão de que, pela primeira vez, aquela mulher branca de fato percebeu que aquela mulher negra existia e sua presença era imensa. 20 e tantas horas de prova e aquela figura fora dos padrões estabelecidos de beleza e poder estava ali. De pé! Ousando ser mais forte, mais resistente, mais confiante, mais determinada que a Princesa Isabel. Como pode isso!!?
Durante algum tempo (tedioso tempo) vi a mulher branca usar de todos os tipos de argumentos para convencer a negra a desistir da prova se posando de forte quando nitidamente estava prestes a sucumbir. Ela negociou de todas as formas, apostando as vantagens da vitória, posando de generosa por dizer estar preocupada que se não ganhasse uma outra amiga podia correr risco de indicação, apelando até mesmo para uma pseudo humildade ou grandeza de alma quando, munidas da informação que estariam livres do temido paredão por imunidade, sugeriu desistirem por não haver necessidade de sofrerem mais.
E diante de todas essas tentações do inferno de Dante, a negra se manteve forte e resoluta no seu propósito de ganhar a liderança por seu mérito. A ponto de dizer que o justo então seria ficarem até uma delas não aguentar mais e que ela aquentaria virar mais uma noite se preciso fosse. Percebendo a imensa determinação da negra e sabendo que não aguentaria, a mulher branca desiste dizendo que não precisariam ficar mais, a negra seria a líder.
Aí começa o problema. A princesinha precisava acreditar que deu a vitória para a negra porque assim eles se veem. Como generosos, grandiosos, dadivosos. Não cabe na cabeça do racista que ele não deu conta. Que foi vencida por uma mulher negra. A loucura é tamanha que a mulher branca sai da área de prova e a primeira coisa que ela diz foi que decidiu deixar a liderança com a negra e ficar com a imunidade porque a negra queria muito. Durante todo tempo ela foi de um em um dando a entender o quanto foi generosa em permitir que a mulher negra ficasse com a liderança depois de tantas horas de competição dura.
ESSA É UMA DAS MAIS DURAS FACES DO RACISMO ESTRUTURAL. ESSA QUE TENTA TIRAR DE NÓS O MÉRITO DE NOSSAS CONQUISTAS E VITORIAS PARA RESSALTAR A BENESSE DO SUJEITO BRANCO MESMO QUE NÃO SEJA VERDADE ESSA BONDADE.
E muitas vezes nos faz sentir culpados, ingratos, injustos. E como essa tática é facilmente comprada por todos. Imediatamente a negra começou a ser taxada dentro e fora da casa como ingrata. Porque todos estão acostumados a enxergar o branco como salvador e o negro como o devedor. Quando um sujeito branco é guerreiro e determinado, suas atitudes são vistas com louvor, com grandeza, bravura. No caso de um sujeito negro é visto como egoísmo, ganância, ingratidão.
A mentalidade branca não esta acostumada a não estar no topo, a não ser a primeira opção. O “We are the champions" não se refere ao sujeito negro na visão do privilegiado. E quando, por algum motivo, como o acima mencionado, eles saem do topo ou da referência a sensação de injustiça se instaura instantaneamente. O privilegiado não consegue entender ou aceitar. Porque na sua cabeça ele não ter o privilégio, seja qual for, não faz o menor sentido. Eles têm de ser e se sentir sempre os protagonistas de qualquer questão em qualquer cenário. E como eles choram! E o choro deles é verdadeiro no sentido de que, para eles, não faz o menor sentido.
Essa situação dialoga com a ideia de bondade e maldade dentro de uma estrutura racista. A bondade, verdade, retidão, gentileza, delicadeza, são ideias, conceitos facilmente aceitos como inerentes ao sujeito branco, em sua maioria privilegiados. Por isso, mesmo quando erram, seus erros são amenizados, justificados, compreendidos. Ao contrário do que acontece com o sujeito negro que mesmo quando não erra, a desconfiança já lhe recai sobre a cabeça. Somos culpados antes que se prove o contrário. Isso é como nos veem, mas na realidade vencemos não porque um branco ou branca nos estendeu a mão, mas porque fomos capazes. E quando um sujeito branco nos estende a mão não é generosidade e sim reparação histórica. Se você se diz aliado entenderá tal afirmação, senão, reveja sua posição. Não estamos em pé de igualdade. As regras mudam de acordo com a gradação da cor da pele. E quem criou essas regras não fomos nós os negros. E se desejamos mudar esse jogo cruel e injusto precisamos entender isso ou senão apenas estaremos fazendo as concessões necessárias para a manutenção de privilégios e o desencargo de consciência.
Com a grandeza de Maya Angelou, a Thelma foi a sala e, ao contrário da branca que falava pelos cantos com um e outro se pintando de fada generosa, perguntou diante de todos se por um acaso a branca estava considerando que sua vitória era uma caridade dela.
Outra coisa que não esperam de nós: o enfrentamento direto e reto. Sem ofensas, mas deixando as coisas bem enegrecidas. Esperam que façamos escândalo para nos declararem barraqueiras sem classe. Mas o que viram foi uma mulher forte em seu posicionamento falando com tranquilidade e firmeza. Sozinha (porque por mais que nos defendam no quartinho, na hora que o bicho pega a grande maioria se acovarda e ficamos sós no front), dizendo na cara de todos: “Você desistiu porque você quis”. E diante das lagrimas de crocodilo da branca dizendo que só queria ajuda-la, numa tentativa consciente ou não de fazê-la de algoz, ela se manteve firme e respondeu: “Eu não to rejeitando sua ajuda porque você não me ajudou. Eu ficaria até de manhã se fosse preciso”.
NÃO PRECISAMOS DA CHANCELA DE NINGUÉM PARA CHEGAR LÁ. NÃO CONFUNDAM OPORTUNIDADE COM CARIDADE.
De oportunidade precisamos sim, porque a estrutura não nos contempla e dificulta nossa acessibilidade. Portanto, não subestimem a força daqueles que estão desde sempre acostumados a correr bravamente atrás do que desejam e precisam contra todas as dificuldades. O que movia a Thelma era a determinação de quem escuta mais não do que sim. O que movia a outra era o hábito de vencer. Tanto que ao invés de focar na própria resistência focou em jogar de forma dissimulada para convencer a outra a desistir. Por mais dificuldade que essa moça branca possa ter passado ela faz parte do grupo dos privilegiados, que estão acostumados a só se enxergarem no topo e a ouvir sempre sim.
Não! Essa mulher negra não é ingrata porque ela não deve nada a ninguém. Ela conquistou pelo seu próprio esforço e mérito. As meninas brancas achavam que faziam a caridade de tê-la por perto, mas ela disse em auto e bom som no momento devido: EU NÃO PRECISO DA SUA CARIDADE!!
Chega de invalidar nosso esforço! Chega de invalidar nossas conquistas! Chega de tirar de nós o heroísmo! Chega de confundir nossa determinação com arrogância e egoísmo! Chega de racismo.
Eu não sou porque vocês são. Eu sou porque NÓS somos.
Tati Tiburcio
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