Expandir o próprio mundo
A pergunta que mais ouvi na vida foi: “Você já leu todos esses livros?”
Geralmente a ouço quando alguém vem pela primeira vez em minha casa e conhece minha biblioteca. Acho “curiosa” essa “curiosidade” que tem a ver com dar conta de tanta leitura. O que move um leitor apaixonado não é a competição consigo mesmo para triplicar o número de livros lidos. E, sim, a delícia de entrar com delicadeza em cada um daqueles universos dispostos na estante. E, com calma, desfrutá-los...
É difícil explicar a paixão pela leitura sem cair em lugares comuns como “você viaja sem sair de casa”, ou “é a maneira mais segura de viver aventuras”, ou ainda, “você vive a vida de outras pessoas sem precisar correr nenhum risco”, e assim por diante.
Os mais radicais diriam que, em tempos de pensamentos tacanhos, a leitura é uma tábua de salvação num mar de mediocridade.
Mas não é tão simples. Há livros bons e livros ruins. Há ideias que expandem o pensamento e outras que o atrofiam. Se não fosse assim, não teríamos tanta gente citando bibliografia para afirmar que a terra é plana, ou que as vacinas devem ser boicotadas, entre outras ideias estapafúrdias que circulam hoje em dia.
Para mim, a leitura tem a ver com o alargamento do mundo interno. Caio Fernando Abreu já falava sobre isso: “Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno”. É preciso constantemente alargar nossos mundos. Mundos reduzidos precisam de armas. Mundos expandidos não se sentem ameaçados pelo que é diferente.
O primeiro passo é a escolha do que ler. Vivemos num país de grandes mestres da literatura. Clássicos e contemporâneos. Estilos os mais variados e histórias riquíssimas, bem como a diversidade da nossa gente. Por outro lado, as livrarias (e os sebos) estão repletos de romances escritos em diversos países, inclusive naqueles que mais desconhecemos.
Assim, o melhor da literatura nigeriana, por exemplo, pode estar na sua esquina. Quer dizer, poderia estar, se livros fossem vendidos em farmácias. Em cada esquina de nossas cidades abundam drogarias, enquanto as livrarias se tornam cada vez mais escassas. Sinal concreto de nosso adoecimento!
Não seria exagero afirmar que ler também é um ato a favor da saúde. Especialmente a saúde mental. Assim como frequentar farmácias, longe de ser um hábito saudável, é uma maneira de manter nossas doenças de estimação bem alimentadas. Mas este é um outro assunto.
Entrar em contato com personagens que vivem dramas semelhantes aos nossos, é uma forma de acalmar a alma. Afinal, quando lemos, nos damos conta que não somos os únicos que... Mesmo no outro lado do mundo também há pessoas dispostas a...
Entrar em contato com personagens que vivem dramas diferentes dos nossos, é uma forma de aumentar a empatia. Ajuda a legitimar o sofrimento do outro, a entender suas dificuldades. Ajuda a não querer obrigar o outro a pensar ou viver como eu acho que deve ser.
Sem falar do deslumbramento. Escritores e poetas que fazem da linguagem um instrumento da beleza, estimulam a sermos também mais belos. A sermos agentes da construção, da delicadeza. E não da destruição ou brutalidade.
A literatura questiona. Sou assim por que quero ser assim? Ou por que me disseram que eu deveria ser assim? Vivo em direção ao que me expande? Ou meu dia a dia me atrofia?
Nesse sentido, ler é uma ação muito perigosa! Não é à toa que as ditaduras adoram censurar ou queimar livros. Ler instiga a escolher. Ajuda a entender que fazer do mundo em que vivemos um lugar mais democrático também passa pelas nossas escolhas.
Lembrei de um belo livro recém enviado para os assinantes da TAG. Uma reunião de contos escritos pela indiana Jumpa Lahiri chamado “O intérprete de Males”. Nunca fui à Índia. Talvez nem vá nessa encarnação. Mas, depois da leitura, guardo em minha pele os aromas e sabores de lá. Entendi profundamente os desencontros de Shoba e Shukumar após a perda de seu filho pequeno. Reconheci nas agruras de Buri Ma, as desigualdades que sustentam tanto a Índia quanto o Brasil. E me enterneci profundamente com o Sr, Kapasi e seu amor repentino pela Sra. Das, apesar da distância social que os separa, no conto que dá título ao livro.
Não é necessário ter uma biblioteca, ou muito dinheiro, para ter acesso a livros. Há bibliotecas públicas nas cidades, há boas edições baratas nas livrarias e há sebos que vendem ótimos livros por menos de 10 reais. O mais importante é permitir-se. Abrir mão de algumas horas dessa correria sem fim a que parecemos (mas não estamos) acorrentados e dar-se de presente a possibilidade de expansão do próprio mundo!
Renato Farias
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