“Falas Negras” e a nossa real história

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Cada leitura que faço hoje me faz pensar sobre como imaginamos as personagens dos livros que lemos na infância.

Não é necessário uma descrição cheia de minúcia ao estilo machadiano para chegarmos a composição imagética projetada no passar das primeiras páginas. Tolhidos da diversidade do mundo fomos aprisionados numa bolha segregante que escolhia, por “mérito”, a cor, o gênero, a classe. 

Por um período da minha vida achei que Mia Couto era uma escritora. Mera questão nominal. Mia é feminino por convenção, convicção, falta de conhecimento. Diferente do que me fez um dia imaginar John Legend como cantor branco. Mera questão de um racismo estrutural sui generis. Ele e tantos outros artistas são brancos no imaginário coletivo de muita gente porque a sociedade racista a qual pertencemos nos ensina a ser, às vezes sem percepção, e, principalmente, de forma anestésica e avessa à questionamentos até tudo se normalizar. Banal, natural, pra que ninguém leve a mal.

O racismo que tanto insistem em negar faz isso. Finca seus pilares numa estrutura social excludente, que escolhe os seus pelo lastro ordinário e desonesto da meritocracia, ainda que as oportunidades não sejam iguais e muito menos para todos. Para a grande maioria, elas sequer existem. E esse processo histórico de não-pertencimento, invisibilização e silenciamento forjou a história do nosso país, criando abismos e fortalecendo mitos.     

“Falas Negras” especial do dia da Consciência Negra exibido pela Globo (criado por Manuela Dias, com direção artística de Lázaro Ramos e preparação de atores de Tatiana Tiburcio, com quem tenho a honra de estar junto aqui no blog), é uma ode que reverbera no íntimo da nossa existência e nos coloca diante os escombros do nosso passado. O discurso biográfico das 22* vozes ali representadas em fúria e delicadeza não se construiu e se enraizou sozinho. Cada voz carrega consigo o grito uníssono de todo um povo. Os heróis e as heroínas protagonistas no combate ao racismo, na luta pela igualdade social e pelos direitos civis - mas esquecidos pelas narrativas canônicas - mostram a importância de conhecermos a história não contada e de como a representatividade seja ela no registro da literatura ou na produção audiovisual é necessária para a formação de uma sociedade consciente e igualitária.  

Além de rasgar a máscara branca do mito da democracia racial, “Falas Negras” derruba o mito de que não há atores e atrizes qualificados para todos os tipos de papéis nas telinhas, nas telonas, nos palcos. Encenado por um elenco potente e primoroso composto por: Heloísa Jorge, Reinaldo Júnior, Izak Dahora, Olívia Araújo, Fabrício Boliveira, Aline Deluna, Flávio Bauraqui, Bárbara Reis, Bukassa Kabengele, Ângelo Flávio, Samuel Melo, Aílton Graça, Guilherme Silva, Ivy Souza, Mariana Nunes, Babu Santana, Naruna Costa, Valdinéia Soriano, Taís Araújo, Silvio Guindane, Tulanih Pereirae Tatiana Tibúrcio. O especial - que merecia mais episódios e uma exibição educativa nas escolas do país, escancara as feridas sociais de um Brasil que não se conhece, não se reconhece e que mata!

Djamila Ribeiro, James Baldwin, Itamar Vieira, Jacqueline Woodson, Conceição Evaristo… Tudo que não li na sala de aula leio e aprendo agora na minha racista desconstrução cotidiana. Hoje, mais do que imaginar personagens eu as escrevo sob o farol contínuo da diversidade. Na desconstrução coexistente entre autor e pessoa eu aprendo e refaço para que todos, crianças e adultos, que me lêem imaginem outros corpos, outras vozes. 

As falas negras são partes indissociáveis de quem somos, são a chama viva da nossa ancestralidade e precisam atravessar o tempo, cravar raízes e frutificar.       

Felipe Ferreira

Instagram @ostrafelipe

*Salve,

Nzinga Mbamde, Mahommah G. Baquaqua, Toussaint Louverture, Harriet Tubman, Olaudah Equiano,Virgínia Leone Bicudo,  Luís Gama, Rosa Parks, Nelson Mandela, James Baldwin, Malcolm X, Milton Santos, Martin Luther King, Nina Simone, Lélia Gonzalez, Muhammad Ali, Angela Davis, Luiza Bairros, Marielle Franco, Mirtes Santana, Tulanih Pereira.