Habemus Pastora Trans

Neste domingo, 26 de janeiro de 2020, ocorreu um fato inédito e histórico neste país: a ordenação da primeira clériga trans pela Igreja da Comunidade Metropolitana, ICM. O evento foi realizado na Paróquia da Santíssima Trindade da Igreja Anglicana de São Paulo.

Alexya Salvador, mulher trans, mãe de três crianças, professora, militante da causa LGBT+ sobretudo travestis e transsexuais, tem uma trajetória interessantíssima na religiosidade. Começou a frequentar a ICM em fevereiro de 2010, tempos depois foi lotada como diaconisa da comunidade local. Seu trabalho incansável com a população de travestis e transsexuais foi proporcionar a leitura do evangelho de outra forma, acolhedora, amorosa, promissora, salvadora, oposto ao estigma determinado por uma sociedade conservadora e uma leitura desajustada aos tempos.

Na contramão de um momento tão beligerante de grupos religiosos nas polÍticas do atual governo, as igrejas inclusivas têm vindo à tona como resposta a essa opressão nefasta. Aliás, o termo igreja inclusiva é uma redundância, nem deveria haver. No bem da verdade, o movimento do opressor fez diversas comunidades e associações se unirem e se fortalecerem contra essa cerceação da liberdade de ser e existir. E isso será apenas o início, os folguedos dos indignados com uma pastora transexual será assunto para todo ano em muitas igrejas.

Reproduzo aqui minha resposta a um comentário sobre como ela pregaria a bíblia que condena a homossexualidade:

Será a mesma bíblia que condena trabalhar no sétimo dia, usar roupas com dois tipos de fios, comer frutos do mar, permitir comércio de escravos, esposas e filhas entre outros, mas onde apenas a suposta homossexualidade é condenada. Como não sigo a bíblia, ela não tem valor algum sobre minha percepção e conduta na vida, e o aprofundamento nesse debate sugiro conversar diretamente com eles, pois o número de igrejas inclusivas refazendo leituras contemporizadas dos textos sagrados acolhendo quem sofre bruscamente, não pára de crescer. O Sagrado nunca determinou sexo para sua salvação humana. A bíblia não foi escrita pelo Sagrado, mas por alguns homens (e não por Cristo) determinando a seu ver o que é certo e errado, homens esses com devaneios, recalques, desejos reprimidos, e toda sorte de psiquê decidindo a vida de inúmeros outros homens e mulheres pelo medo e imposição. E a lembrar que a bíblia sempre foi instrumento de poder e dominação colonial, aristocrático e monárquico em todos os tempos, e não instrumento de amor e paz, caso contrário não haveríamos dois mil anos de guerras. Afinal, nunca se matou tanto em nome de Deus quanto nesses milênios, em narrativas criadas e distorcidas ao longo dos séculos. E Jesus jamais falou que homosexualidade é pecado, ele acolheu toda sorte de gente, ele não perguntou se o ferreiro era gay ou a vendedora de leite era sapatão. Tampouco Maria Madalena foi prostituta como leva fama, José nunca foi pai de Cristo, nem Jesus de olho azul, pele branca com cabelo liso. Enfim há uma infinidade de narrativas falsas do discurso branco eurocêntrico de colonialismo e dominação. Ah, e para finalizar, não se tem na história humana lgbt+ fazendo guerra contra héteros sua sexualidade e valores, mas o contrário é verossímil. Isso parece um filme de X-Men

Textos religiosos precisam ser interpretados em contexto histórico-cultural, questionados e estudados e isso não diminui seu valor salvífico, a menos que sua confiança no Deus/Sagrado seja fraca. Não vamos esquecer que religiões monoteístas são de origem tribal, de deserto, de percepção temporal e estruturas sociais diferentes da atual, onde a sobrevivência requeria mais que armas. Que maior temor podemos dar ao inimigo condenando-o ao inferno eterno? Buda Shakyamuni resistiu a ordenação de sua tia Mahaprajapati por saber que a sociedade machista hinduísta lhe traria muitos problemas. Mulheres raramente receberiam ofertas de comida na hora da mendicância, prática comum dos brahames, e eram tidas para reprodução e prazer.

A diversidade transforma o mundo e abraça a todos. Nessa visão ninguém fica de fora. O Rev. Cristiano Valério da ICM disse que “se tivéssemos uma imagem de Deus ele seria um mosaico enorme que contemplasse o brilho de cada ser humano”. Queremos mesmo abraçar a todos ou somos seres seletivos por natureza? Éramos seletivos pela nossa sobrevivência e desejo de poderios territoriais? Não TRANSpassamos esse comportamento primitivo ou apenas o sofisticamos?

No primeiro culto realizado, a comunhão de Alexya foi em homenagem a Sylvia Rivera, protagonista trans da noite do Stone Wall lançando sapatos de salto alto em chamas aos policiais truculentos no bar novaiorquino em 1969. E em clamor Deus é gay, Deus é lésbica, Deus é travesti, Deus é transsexual, Deus é heterossexual, Deus é negro, Deus é branco, Deus é pobre e por fim Deus é Humano, Alexya abençoou todos, partiu o pão e consagrou o vinho a todos, todas e todes presentes, indiscriminadamente.

Se hoje temos direitos, ainda que não cumpridos integralmente, é porque muitas vidas foram ceifadas. Ser LGBT+ não é uma obviedade. O lugar de todas as pessoas é onde o Deus/Sagrado assim chamar. E se você for crente, pois precisamos colocar aqui os ateus em iguais direitos que sofrem com a tormenta religiosa. Não existe apenas uma forma de salvação, de visão sobre a Vida. Mas deixo uma provocação: e se em vez de dizer que o Sagrado se manifesta de diferentes formas, houvesse diversos Sagrados convivendo mutuamente? Eles vivem em paz e nós os defenderíamos como crianças e seus brinquedos na creche?

Nós da Rainbow Sangha Budismo LGBT+ fomos lá prestigiar, levar nosso carinho a este importante trabalho que está apenas começando, agora oficializada como Reverenda. Que o evangelho chegue todos àqueles que foram postos para fora do pastoreio na figura da Reva. Alexya Salvador e que desejem ali ser salvos. O Sagrado está disponível a todos, indiscriminadamente de sua orientação sexual, social e étnica. Ele não pede nada, apenas que tenhamos um coração puro e confiante naquilo que chamamos Vida.

Os perversos carregados de pesados males devem apenas recitar o Nome Búdico.

Eu também sou incluído em seu acolhimento;

Ainda que meus olhos toldados pelas paixões não possam percebê-la,

A Grande Compaixão sempre me ilumina, jamais empalidecendo.

Trecho do Shoshinge composto por Shinran, escola Jodo Shin.


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Rev. Jean Tetsuji釋哲慈

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