“Homens?”: a reconstrução dos caquinhos da masculinidade

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O streaming tem sido um dos principais refúgios durante esse período de isolamento social. Entre ócio, exercícios, leituras, processos criativos e afazeres domésticos a produção audiovisual tem espaço cativo na mudança de hábitos cotidianos que nos vimos obrigados a fazer. Recentemente, adentrei o universo da Amazon afoito para conferir, ainda que com certo atraso, a elogiada “Fleabag”. Mas além do deleite proporcionado por ela encontrei uma adorável surpresa que me fez refletir (dentre as tantas reflexões que tenho feito desde o início da pandemia) sobre o papel do homem e a minha condição como tal.     

Idealizada pelo multifacetado Fábio Porchat e produzida pela Comedy Central, “Homens?” aborda com muito bom humor e perspicácia o universo masculino e tudo o que o define, e ao mesmo tempo, tudo que o questiona. A interrogação que acompanha o status quo do título reflete a capacidade narrativa que a série tem de traçar um panorama histórico e geracional dessa masculinidade que precisa se impor na contramão de uma fragilidade ensinada a ser escondida.       

A necessidade do homem de reforçar os símbolos de masculinidade conduz o arco dramático da primeira temporada. Alexandre (vivido pelo próprio Porchat) precisa lidar com a impotência sexual, principal fator de instabilidade da condição masculina, e pra isso conta com a ajuda dos seus velhos amigos Gustavo (Gabriel Godoy), Pedrinho (Raphael Logam) e Pedro (Gabriel Louchard). O quarteto de machões-comedores-desencanados, onipresente em todas as gerações de um mundo machista, se percebem diante uma sociedade em contínua transformação de ideias e comportamentos. 

Foto da Série (Alê e o Pênis).

Foto da Série (Alê e o Pênis).

Numa fala bastante simbólica Alê diz que “o tempo inteiro ensinaram pra gente uma coisa e agora dizem que está tudo errado”, e isso sintetiza essa mudança de papéis. O questionamento dele é o de muitos homens. O machismo é uma construção cultural.

Fomos criados seguindo dicotomias repressoras do que é pra homem e do que é pra mulher.

Desde a cor das roupas do bebê, o brinquedo que temos que levar pra escola, a escolha por sempre provocar o choro no lugar de ser a pessoa que chora, até chegar na ideia de pegar todas as mulheres do mundo que queremos, trair a que supostamente se ama e justificar no instinto incontrolável que no fundo diz mais sobre caráter do que sobre biologia.       

Da mesma forma que é impossível falar sobre paternidade sem ter a maternidade como bússola, não tem como falar sobre o machismo sem a presença de uma abordagem feminista como contraponto reflexivo e movimento de convergência discursiva. Em diversos momentos o roteiro desconstrói a estrutura sexista dos seus protagonistas com situações e ações de personagens femininas que expressam e fortalecem o novo posicionamento da mulher diante o trabalho, o sexo, a vida.    

A representação falocêntrica é outro traço inerente dessa masculinidade nociva, adestrada desde a infância, sobretudo pela figura paterna, a reverenciar o órgão genital. A materialização do pênis do Alê, vivido com exímia entrega e desenvoltura pelo Rafael Portugal, é uma sacada genial. Além de representar a imaginária relação de dependência do “pau” nas relações masculinas ela revela suas vulnerabilidades em meio ao conflito da “cabeça” que pensa ainda que de forma arcaica e egoísta, e a “cabeça” que parece ter vida própria, que precisa estar sempre pronta, mas que nem sempre obedece. Brochar levanta a pergunta: até que ponto o pênis tem o poder de legitimar a masculinidade de um homem?

 Ao longo dos episódios a liberdade sexual do homem é representada com normalidade nas mais diversas situações cotidianas que eu e a grande maioria dos homens que leem esse texto já ouviram ou viveram. A necessidade de perder a virgindade com garotas de programa, trair pra fazer valer a essência masculina, ter fetiche em fazer sexo com mais de uma mulher, são alguns dos exemplos mais clássicos. Mas essa permissividade não contempla o sexo oposto. Quando o baralho do desejo muda de mãos o direito da mulher de ter vários parceiros, de transar com quantos e com quem ela quiser, de experimentar outras formas de prazer (ainda que seja com o próprio parceiro e envolva outras zonas erógenas, como o cu)  o desejo é castrado e se transforma em promiscuidade. 

A diferença de tratamento entre os gêneros é abordada também no âmbito do assédio. A naturalização da importunação sofrida pelas mulheres, motivo de ironia e deboche nos diálogos, vai na contramão do estranhamento causado por um assédio quando a mulher está no papel da assediadora. Os dois lados da moeda presentes na narrativa enriquece o debate em torno dessas relações e convida o público de homens(?) a sair da sua zona de privilégios e exercitar a empatia. Dois chifres, duas medidas? Sexo a três só se o prazer dobrado for o meu? O gozo é pra todos! 

Uma das principais qualidades da série está no equilíbrio alcançado pelo tripé criação-roteiristas-direção entre a essência cômica de entretenimento e sua capacidade de debater assuntos importantes social e culturalmente. A proposta de romper as amarras da masculinidade com reflexão, sem abrir mão do humor, funciona bem e isso permite que na segunda temporada a trama central ganhe um tom mais sério com o conflito em torno da paternidade e do aborto (um novo encontro entre o papel materno e o paterno). Ao se depararem com a possibilidade real de serem pais os quatro amigos reagem com espanto, medo, imaturidade e, como sempre acontece, transferem o peso da responsabilidade para a mulher que foi descuidada, que não tomou anticoncepcional, que tem todo o direito de ser mãe, mas se preferir interromper a gravidez receberá todo “apoio” e fará o melhor pra todo mundo.

Conforme a narrativa se desenrola eles iniciam um processo gradual de autocrítica dessa masculinidade ao perceberem o quanto ela é tóxica, excludente e preconceituosa. A cena da festa com a galera dos tempos de escola onde Alê encontra Maria Paula (Lua Blanco), mais uma da sua lista de pegador, e eles ficam isolados numa bolha funciona como metáfora para simbolizar a forma como nos sentimos quando abrimos nossa cabeça com o passar do tempo, desconstruímos velhos estereótipos e encontramos pessoas que ainda pensam e reproduzem discursos de ódio e violência.  

O elenco é muito bem escalado e dá credibilidade ao panorama temático diverso e tragicômico. Porchat, Gabriel Godoy, Raphael Logam, Gabriel Louchard são talentosíssimos e possuem um entrosamento tão natural que parecem realmente serem amigos de longa data que se zoam, se divertem e se apoiam seja nos momentos de glórias ou de vacilos. O time feminino também é muito bem representado mesclando atrizes de diferentes gerações e experiências como: Miá Melo, Lorena Comparato, Gisele Batista, Gisele Itié, Cíntia Rosa, Maytê Piragibe, Gisele Fróes, Stella Freitas, Dhu Moraes.

“Homens?” consegue se firma como uma série plural ainda que seu acorde maior seja o universo masculino.

Com um texto provocativo e em sintonia com questões raciais, políticas e de gênero ela consegue construir uma narrativa de colisão e inclusão sem ser panfletária e enfadonha. A reconstrução da fragilidade masculina além de saudável e necessária, mostra que existem séries brasileiras de humor melhores e mais relevantes do que as americanas, sem que seja preciso apelar ao uso do efeito sonoro de gargalhadas. 

Chega de machismo e de viralatismo!

Felipe Ferreira

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