Iluminando muitos "sóis"!

Só se aprende no caminho e por isso eu sou igualmente grato aos momentos de dor e glória porque em ambos houveram perdas e ganhos.

O canal Under The Sun é uma confirmação de uma jornada onde eu me percebo negro, pai, filho, imigrante e uma voz ativa na sociedade. Mais que um desejo, este canal é uma estratégia de aquilombamento, inserção e imersão as causas ligadas a negritude. Mas até chegar ao Under The Sun eu tive que passar por um processo ora cansativo, ora doloroso, mas de um aprendizado imensurável.

Morando em NY há  3 anos e meio, prefiro dizer NY que Estados Unidos, já que a vida fora da Big Apple é bem diferente. Cheguei em NY em Agosto de 2016 para passar um mês, e quatro meses depois estava “decidido” a tentar a vida na cidade mais importante do mundo. Deixo a decisão em aspas pq foi mais por pressão dos amigos e pelas oportunidades que eu poderia ter aqui do que o tal sonho americano que muitas pessoas vislumbram. 

Logo após eu comprar as passagens para viver com o meu companheiro em NY, o Trump foi eleito, presidente da República. Eu não podia voltar atrás, já tinha solicitado demissão nos hospitais que eu trabalhava, mas recordo que nesse momento até os amigos mais animados com a minha ida ficaram em silêncio. Eu pensava...com relação a grande parte da população eu estou economicamente estável, tenho dois empregos, consigo bancar uma escola bacana pro meu filho, ajudo a minha mãe e moro em um apartamento confortável no centro do Rio de Janeiro, perto de tudo que eu gosto (samba, teatro e boemia). Será que eu preciso mesmo ir???

A mesma voz que dizia vai, dizia não vai, e eu optei pelo inesperado. Troquei o que era certo pelo o que há de ser, entreguei o apartamento e fiz uma festa de despedida com os amigos mais chegados.

18 de Dezembro de 2016 eu cheguei em NY, curiosamente a temperatura naquela semana chegou a - 18 e a alegria pela cidade coberta de neve e passeios turísticos de inverno logo foram perdendo o encantamento quando eu olhava nas redes sociais as postagens do verão carioca e a proximidade do carnaval, porém uma coisa que me chamou atenção foi a representatividade preta na cidade.

Aqui você vê pretos com grana, nos teatros, nos cinemas, nos museus, nas galerias de arte e nas propagandas. Meu companheiro, branco, me explicava que foi pela diversidade que ele escolheu NY pra viver e que seria ofensivo, por exemplo, algum show do Broadway só com pessoas brancas e mesmo com toda história de luta dos negros, o racismo ainda era algo a ser combatido no país. Isso me despertou a vontade de saber um pouco mais sobre nossos super heróis, super heróis negros, que fizeram diferença na história americana e mundial. Comecei a aprender sobre Nina Simone, Aretha Franklin, James Baldwin, Mohamed Ali, Angela Davis, Martin Luther King, Malcom X e o movimento dos Panteras Negras.

Eu estava cursando uma faculdade onde não era necessário diploma, mas o contato com essas relíquias definitivamente mudaria minha vida.

Eu venho de uma família pobre e periférica, retrato comum na sociedade brasileira e com o plus de ser negro é quase fechar o pacote pra ter uma vida breve, com duas possibilidades de destino, cadeia ou caixão. Minha mãe me educou para que a violência policial não chegasse até a mim e isso exigia algumas coisas que só hoje eu compreendo como: entrar pra casa cedo, não usar boné, está com o documento de identidade e se for parado pela policia não questionar.

Ela fez o possível e o impossível pra que eu concluísse o Ensino Fundamental em uma escola particular. Várias vezes eu via minha mãe, empregada doméstica, fazendo contas para pagar as mensalidades atrasadas do colégio. Com 13 anos ela não suportou a luta de me manter sozinha e eu tive que sair da escola particular. Naturalmente até os 13 anos de idade meus amigos eram brancos e eu estava confortável com a sensação de exclusividade de ser o único negro da sala.

A partir da saída da escola particular eu comecei a ir em busca de me tornar branco, mesmo só tendo voz em situações bem específica.

Não era dito de forma clara, mas eu entendia que para eu estar com essa galera eu tinha que ser o engraçado, o que dançava mais, o desinibido.

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Quando chega a maturidade e eu começo a me perceber no “centro do mundo” falando um outro idioma e com orgulho da minha história. Ai meu amor! Nada me segura! E eu coloquei como meta de vida que minha mãe e meu filho me visitassem o mais rápido possível. O primeiro a me visitar foi meu filho e foi com ele que eu tive a primeira experiência de privilégio por habitar em pele preta.

Eu e meu filho fomos em uma das igrejas mais importantes de Nova York, no Harlem. Uma igreja evangélica que também é parte da atração turística da cidade. O site já informava sobre o traje. Bermudas e sandálias nem pensar! Então nós colocamos as nossas melhores roupas e fomos para igreja que fica a 10 minutos da minha casa. Peguei a informação na portaria e fui encaminhado para a fila de turistas, conversava com Allan até que sai uma Sra. negra, alta, pele brilhante segurando uma bolsa chique e com um vestido lindo rosa chá fazendo combinação com o chapéu e sapato no mesmo tom.

Todos olhavam pra aquele acontecimento até que o Allan disse: pai ela está vindo na nossa direção? Respondi: eu acho que sim, você fala com ela já que o seu inglês é melhor que o meu. Ela se aproxima e começa o diálogo. - Olá senhores o que vocês estão fazendo aqui? - Estamos na fila para assistir o culto. - De que parte da África vocês são? - Somos brasileiros -  Vocês são um dos nossos, essa fila não é pra vcs. Dois Diáconos estavam atrás dela e ela disse: Benjamim leve esses Srs. para dentro da igreja. Tenham um bom culto!

Benjamim nos colocou na terceira fileira da igreja que muitas vezes foi cenário de filmes gospel americano. Depois de meia hora os visitantes entraram e ficaram em uma parte de cima com menos visibilidade do que nós pretos privilegiados. Nesse momento me veio à cabeça a seguinte reflexão: eu por anos desfilei em escolas de samba, ritmo criado pelos meus antepassados, difundidos pelo meus antepassados e eu nunca fui chamado para ter o melhores acesso à vista do show. Quando isso aconteceu foi porque eu estava acompanhado de pessoas brancas e consciente que se eu não estivesse com eles isso não aconteceria. 

Apesar da construção da minha identidade negra, eu ainda precisava passar por alguns desencontros para me encontrar, e dois anos mais tarde eu ja não estava mais vendo sentido para continuar aqui.

Voltei ao Rio com a sensação de que eu não tinha dado certo em NY, aqui pode ser o melhor lugar pra muita gente mas não era o meu caso. O retorno foi  em Fevereiro de 2019 e logo após o carnaval eu resolvi criar um evento para receber as energias dos amigos que eu não via há muito tempo. Convidei 50 pessoas acreditando que apareceria no máximo 25, era aquele período de ressaca de carnaval e eu achei que as pessoas estavam sem saco pra mais folia, mas para a minha surpresa apareceram 56 pessoas. Nessa festa eu reencontrei uma amiga que dizia que eu era um cara de sorte por morar em NY e pra que eu tirasse da cabeça a ideia louca de voltar a morar no purgatório da beleza e do caos. Então eu disse e ela que eu conseguia esconder atrás dos meu sorriso frustrações que ninguém notaria. Ela me convidou a conversar com a sua mãe que podia me ajudar a cuidar da minha espiritualidade e que podia me ajudar neste momento de indecisão. 

A festa foi um arraso e uma semana depois estava eu diante de uma mesa e de uma Sra. de branco falando coisas da minha vida que eu nunca tinha contado pra sua filha e coisas tão íntimas que eu não falava nem pra mim. Aqueles medos e desejos que a gente guarda no nosso íntimo sabe? Pois é, ali foi exposto. Ela terminou dizendo que eu tinha coisas da terra pra cuidar e a minha fuga de conexão com a ancestralidade só fortalecia esse mar de indecisões que eu vivia. A partir dali eu comecei a tomar banho de ervas, acender velas e investigar sobre as religiões de matriz africana. Eu me senti tão bem fazendo coisas periodicamente e dando outro significado a palavra religião. 

Eu tinha que voltar a NY para resolver questões matrimoniais e alguns dias antes de voltar eu tive um almoço com minha tia avó por parte de pai, minha prima e meu filho. Eu fui um pouco afastado da família do meu pai por um tempo, por conta da separação dos meus pais quando eu tinha 4 anos de idade, mas sabia superficialmente que a família do meu pai tinha uma influência importante na sociedade preta carioca. O restaurante que nós almoçamos foi casa da minha bisavó onde ela junto com meu bisavô recebia pessoas que chegavam em grande parte da Bahia buscando melhores oportunidades de vida. Foi um encontro maravilhoso, minha prima brincava; seu Ogum é visível há quilômetros de distância.

Antes da chegada do churrasco, (eu consumia carne nesse período), ela me deu um livro que contava a história da minha bisavó. Eu separei esse livro pra ler no avião e ao voltar eu chorava a cada pagina, não sabia que eu parecia tanto com a minha bisavó. E passei a compreender melhor meu pai, quem não tem acesso a afeto vai ter mais dificuldades de reproduzir.

Eu li o livro sobre da história da minha bisavó três vezes e cada vez que eu lembro de algo eu vou lá para consultar. Não dou, não vendo, e só empresto sob a minha supervisão.

Entre algumas idas e vindas eu estou em NY e hoje eu percebo que eu precisava passar pelo processo de conexão da minha ancestralidade, conhecimento dos meus antepassados e encontro da minha própria voz e a partir desses destes ciclos eu comecei a sentir a necessidade de fazer a minha parte. O Under The Sun e muito mais que um canal no Youtube, é um meio estratégico onde eu me aproximo dos meus e trago pra perto aqueles que têm empatia por nós. Feito com trabalho, estudo e experiência, cada dia eu aprendo mais um pouco. O projeto piloto conversa com pessoas pelo mundo, com diferentes narrativas sobre a experiência delas diante a pandemia. Eu também criei um quadro chamado “Sincerão de Sábado" onde eu ligo a câmera e falo sobre um assunto relevante aqui e no mundo, sem edição e sem cortes.

O canal está ganhando formato e poder contar um pouco da minha história aqui é a confirmação que eu tenho que continuar seguindo reto. Quem nos protege não dorme, mas é necessário sensibilidade e calma pra que a gente ouça a nossa própria voz. 

Axé!

Anderson Pinto

Instagram @underthesunoficial

Canal Under the Sun