“Malcom & Marie”: uma história de amor

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Este artigo exige uma ressalva em tom de advertência: para quem não assistiu o filme, recomendo que não leia. 

Dentre as várias provocações do filme, o roteirista e diretor Sam Levinson debate a metalinguagem e a crítica de cinema. Numa das cenas, o personagem Malcom Elliot conversa exaltado com Marie sobre sua insatisfação com uma crítica que acaba de sair na madrugada após a estreia do seu filme. A crítica diz que o início do filme foi filmado com Steadicam, um estabilizador de câmera. Mas, Malcom fica aborrecido, porque a cena foi filmada por um acessório chamado de Slider Dolly Traveling, popular Dolly. Malcom reclama enfurecido com a falta de imaginação da crítica. Esse detalhe parece informar algo a respeito do próprio filme que estamos assistindo. O plano aberto que apresenta não foi filmado com Steadicam. Por que isso deve nos interessar?

Pois bem, isso diz respeito ao modo como o filme deve ser encarado, ao invés de uma leitura técnica. Sam Levinsom está informando que a Crítica de Cinema e as espectadoras, pessoas interessadas em se divertir, devem buscar a si mesmas na trama. Outro aspecto importante é a fotografia em Preto e Branco (PB), o que acentua os contrastes e revela a dicotomia do casal, explorado do início ao fim, até a cena final, em que a textura cromática está acinzentada, mostrando o desfecho de uma calmaria depois da tempestade da Discussão de Relacionamento (DR).

A fotografia de Marcell Rév, muito bonita por sinal, em PB ajuda a explorar, sem nenhum sinal de colorismo, dentro da variedade de tonalidades de pele negra, Malcom um homem negro retinto e Marie, negra de pela clara, como os profissionais de luta, à medida que estão ocupando um ringue de boxe ou UFC afetivo (num ringue de boxe do século XX era comum que um dos lutadores vestisse calção escuro e o outro calção claro). É nessa arena que Marie fala da sexualização da personagem principal do filme que é baseada nela, vestida de calcinha e camiseta. Marie está com pouca roupa e num tom metalinguístico diz para a plateia que é absurda a ideia de ver uma mulher de seios de fora ou aparentes numa roupa colada como um apelo erótico.

Pois bem, após uma breve “crítica” panorâmica do filme, vamos para a DR propriamente dita. É importante ressalvar que não é o caso de buscarmos verossimilhança, os diálogos são elaborados, longos e muito articulados. Vale repetir é uma discussão sobre a discussão. 

Malcom e Marie chegam a casa, o cineasta em ascensão chega eufórico, falando sem parar. Marie aparenta reticências, olhar perdido. Ela traz uma queixa muito comum das mulheres endereçada para homens numa sociedade patriarcal. Marie reclama da falta de reconhecimento!

No contexto do patriarcado, a misoginia e sexismo, ensinam os homens a se preocuparem somente consigo, desprezando emocionalmente as mulheres, articulando afeto somente através da relação sexual.

Se os homens são aficionados por virilidade laborial, como diz a canção de Gonzaguinha:

O homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho

E sem o seu trabalho
Um homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata.

Numa sociedade patriarcal, um “homem de verdade” realiza, conquista o seu espaço. Diante disso, Marie reclama que o filme dele só foi possível, porque ele contou a história dela e, mesmo assim, não se deu ao trabalho de agradecê-la. Ele mencionou a professora da Educação Infantil, o lanterninha do cinema do bairro quando ele era um garoto que adorava cinema, mas não a mencionou. Marie afirma que o filme não existiria sem ela.

Nós podemos interpretar como o fato de o sucesso público de um homem estar ligado ao apoio emocional de uma mulher sem carreira ou que deixou seus sonhos de lado para dar suporte ao companheiro. Malcom contra-ataca, ele afirma não é sobre ela e que montou um elenco de pessoas que inspiraram a personagem, um primo e ex-namoradas. A intimidade aparece como uma lavagem de roupa suja, na qual todas as falas não têm filtros e cada um puxa um tipo de fatura, custos que devem ser pagos. Malcom diz o quanto fez por ela, Marie diz o quanto fez por ele. Ela busca reconhecimento e mostra o desejo de ter feito o papel principal no filme.

Em meio às discussões, Malcom e Marie tentam transar algumas vezes, mas sempre alguma coisa quebra o clima.  A tentativa de transar parece ter relação com reconciliação, intimidade positiva diante de tantas coisas que ferem. Mas como diz a pensadora burquinense Sobonfu Somé,

“o melhor para intimidade é fazer sexo sem sentimentos tóxicos”.

“Malcom& Marie” é um filme sobre amor, sobre a intimidade, sobre os efeitos terríveis do patriarcado na vida de todos os casais. Assim como Imani, a personagem do filme de Malcom, não é uma cópia da vida de Marie. A tensão entre Malcom e Marie está à espreita de todos os casais, principalmente, nas relações monogâmicas entre um homem e uma mulher. Malcom pode parecer vilão, porque justamente não reconhece Marie. Ela pode parecer vitimista, porque fica mais confortável como dependente emocional e sem capacidade de dar a volta por cima, além de não ser bem agradecida. Malcom deu suporte para ela por seis meses de medicação pesada, compreendendo o momento em que a vida do casal ficaria sem sexo quando ela teve um pequeno caso fora do relacionamento. Malcom parece querer “jogar na cara” de Marie que ela está sóbria por conta dele. Marie “joga na cara” que ele não faria o filme sem ela, a verdadeira matéria-prima.

O cenário de UFC afetivo – uma DR insistente com acusações mútuas, e pedidos de desculpas – pode dar a impressão de que devemos tomar partido e torcer para Marie ou Malcom. Ora, não se trata disso ou daquilo, faz mais sentido isso e aquilo. Malcom diz: “– Eu te amo, mas não preciso de você.”. Ao invés de dependência, de uma necessidade vital, Malcom sugere o desejo de estar junto. Marie exige algo de Malcom: reconhecimento. Não se trata de “precisar” dela, mas de reconhecer o encanto que sua vida ganhou ao seu lado.

O que Malcom pede? O que ele precisa? Aprender que intimidade não nos autoriza a magoar. Não se trata de um combate. E sim de que precisamos resistir aos impulsos políticos de ver as cenas do filme como uma arena em que Marie é protagonista, heroína e Malcom o vilão, ou vice-versa. Não se trata exatamente de tomar partido pela visão de uma das partes do casal. Malcom e Marie vivem numa estrutura complementar, não de oposição. A base fundamental para um relacionamento amoroso. Não se trata de disputar quem tem razão. O que não significa que o relacionamento do casal não seja abusivo, que Marie não esteja oprimida, que Malcom não seja um homem emocionalmente desconectado. Marie diz: “– Você é um porco, defeca onde come”. A lição é que a intimidade não é uma enxurrada de insultos. Marie poderia ter “exigido” o teste para o papel principal do filme, Malcom poderia ter “lutado” mais por sua participação.

O que o filme nos faz pensar com isso?

A comunicação é uma das principais barreiras de um relacionamento.

Nem sempre sabemos dizer o que sentimos e ouvir o que foi dito. Nessas horas, ao invés de criarmos um modo eficiente afetivamente de comunicação, podemos partir para projetar culpa na pessoa amada. Uma afirmação como: “– Eu estava certa e você, errado.” Não ajuda que um casal prospere afetivamente. Dizer algo como: “– Eu a encontrei no fundo do poço.” ou “– Você é uma desequilibrada.” Como uma acusação, não ajuda um casal a se conectar. Uma DR não deveria ser uma briga, ao invés de um jogo de tênis, deveria ser frescobol.

Na minha perspectiva, a questão filosófica do filme é:

“como podemos amar nessa sociedade estruturalmente marcada pela dominação e pelo controle?”.

Talvez, Malcom precise aprender a agradecer, Marie a assumir escolhas. Na cena final, Malcom procura Marie e a encontra fora da casa. A imagem distante, o casal em silêncio é um bom desfecho, toda história de amor permanece em aberto, não é final feliz ou infeliz, juntos para sempre ou separados. É a primeira vez que ambos estão juntos fora de casa no filme. É a saída, o quintal, fora dessa sociedade representada pela casa.

O que vai acontecer no quintal? Numa boa história de amor, não sabemos.

Renato Noguera

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Ficha técnica do filme

Título: Malcolm & Marie

Direção e Roteiro: Sam Levinson

Ano: 2021

Data de lançamento: 05 de fevereiro (Netflix)

Duração: 106 minutos

Sinopse: O cineasta em ascensão, Malcom Elliot (John David Washington) e sua namorada, a atriz Marie (Zendaya) voltam para casa apósuma estreiae ficam aguardando as críticas sobre o filme roteirizado e dirigido por Malcom, enquanto isso o casal vive uma Discussão de Relacionamento (DR)