Menina vestia azul e rosa era cor de menino
Em alusão ao título deste artigo, vale a pena situar que no início do século XX, rosa era considerada uma cor com mais vivacidade, mais próxima do vermelho, cor de sangue. Enquanto, a cor azul, cor do céu, possuiria qualidades angelicais e delicadas. O livro Pink and Blue: telling the Girls from the Boys in America (Rosa e Azul: contando às meninas dos meninos na América) de Joe B. Paoletti, ainda sem tradução, explica bem quando o rosa começou a se tornar cor de meninas, um fenômeno que envolveu os mundos da moda e da política, durando décadas no século XX até se consolidar.
Daí, o que interessa aqui é reconhecer que qualquer menção às cores “rosa” e “azul” despertam debates de gênero. A célebre filósofa francesa Simone de Beauvoir tem uma frase que tem sido reciclada, revisitada, aplaudida e vaiada nas redes sociais. Beauvoir disse:
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.
A estadunidense Judith Butler e a socióloga nigeriana Oyeronke Oyewumi trazem contribuições significativas para o debate. Oyewumi escreveu a Invenção das mulheres em que argumenta que em diversas culturas africanas (sendo que ela se dedica a escrever sobre o mundo iorubá), o gênero é uma categoria que emerge somente na juventude. As crianças são apresentadas por um gênero neutro. A palavra para rei e rainha é uma só. Butler nos fala de performances de gênero socialmente construídas. Por exemplo, na indústria de roupas do século XX, as calças masculinas frequentemente possuíam bolsos traseiros para carteiras; mas, as femininas raramente tinham bolsos. Daí, as carteiras “feitas” para mulheres eram dimensionadas para bolsas “femininas”. Trata-se de uma construção sócio-cultural. O gênero não possui nenhuma natureza essencial.
Os estudos de gênero e sexualidade têm uma longa história. No mundo a década de 1960 foi o momento que a demanda por problematizar gênero passou a se tornar mais constante nos movimentos sociais e nos estudos acadêmicos feministas. No Brasil, o primeiro trabalho acadêmico foi a tese A mulher na sociedade de classes da socióloga Heleieth Saffioti. Ela fez um trabalho em que debatia a opressão da mulher nas sociedades patriarcais no final dos anos de 1960. Em 2004, Heleieth Saffioti publicou o livro Gênero, patriarcado e violência trazendo à cena autoras como Gayle Rubin e Joan Scott. Uma leitura atenta dessa obra ajuda a desfazer confusões que correm livremente na sociedade brasileira contemporânea, tal como:
“SERIA O FEMINISMO, O CONTRÁRIO DO MACHISMO?” RESPOSTA: NÃO.
Na atualidade, alguns movimentos sociais têm usado a expressão “ideologia de gênero”. O assunto ganhou muita visibilidade quando o Ministério da Educação (MEC) buscou incluir educação sexual, combate às discriminações e promoção da diversidade de gênero e orientações sexuais no Plano Nacional de Educação (PNE), em 2014. Ora, tecnicamente falando não faz sentido algum afirmar a sua existência.
FALAR EM IDEOLOGIA DE GÊNERO É O MESMO QUE POSTULAR A EXISTÊNCIA DE UM “CÍRCULO TRIANGULAR”. AS DUAS CATEGORIAS NÃO COABITAM.
No campo da sexualidade humana, a orientação sexual é um assunto que ganhou muita luz. Os movimentos sociais e políticos que defendem que a sexualidade humana está pautada numa natureza biológica binária falam em “ideologia de gênero” e “opção sexual”. Estudos de gênero e sexualidade criticam de maneira consistente a tese da “opção sexual”. A expressão conceitual adequada é: orientação sexual. Isso quer dizer que as pessoas desenvolvem sua sexualidade ao longo da vida. Daí, o sexo biológico não é o fator que determina para onde aponta o desejo afetivo-sexual. Vale a pena elucidar algumas categorias num exercício crítico informativo. A partir das contribuições das autoras já mencionadas e de outras autorias, quando o assunto é sexualidade humana podemos falar, tal como na imagem que abre este texto, em quatro categorias: sexo biológico, identidade de gênero, expressão de gênero orientação sexual.
Ora, como se fala tanto em sexo nas redes sociais, vamos começar por essa categoria. Pois bem, sexo biológico diz respeito a alguns elementos do corpo, tais como: genitália, órgãos reprodutivos e cromossomos. Mulheres (com vagina), homens (com pênis) e pessoas intersexuais (com genitais ambíguos ou ausentes). Outra categoria é a identidade de gênero. Dentro do contexto de estudos das Ciências Humanas, gênero está associado à construção social do sexo biológico. Um produto do contexto social e histórico. A identidade de gênero é o modo como uma pessoa se sente e representa a si mesma no contexto desses papéis de gênero socialmente construídos. Portanto, existem pessoas que não se identificam com a designação de gênero que foi atribuída no seu nascimento: mulher transgênero e homem transgênero. E, por outro lado: mulher cisgênero e homem cisgênero, cuja identidade “acompanha” o sexo biológico. A expressão de gênero é outra coisa. Ela trata da maneira como nós nos expressamos, inclui roupas e outros repertórios, e pode ser: não-binária, masculina ou feminina.
Além de sexo biológico, identidade de gênero e expressão de gênero, a orientação sexual é uma categoria muito importante. Porque diz respeito a atração sexual e interesse romântico.
O FENÔMENO É COMPLEXO E A SEXUALIDADE HUMANA É DIVERSA. NÃO FAZ SENTIDO ACREDITAR NUMA ÚNICA POSSIBILIDADE HETERNORMATIVA DE EXPRESSÃO DO DESEJO.
Em termos gerais, nós temos as seguintes possibilidades: heterossexual (quem sente atração por pessoas do gênero oposto), homossexual (quem sente atração por pessoas do mesmo gênero) e bissexual (quem sente atração por pessoas de ambos os gêneros) e pessoa assexuada (quem não tem interesse algum).
Os problemas começam por conta de um fenômeno político chamado heteronormatividade. A ideologia de gênero surge nesse contexto, defendendo um tipo de “natureza”. Pois bem, a heternormatividade sugere que a heterossexualidade é natural, irrestrita e incontornável. Porém, se quisermos usar o termo controverso “natural” e responder puristas que condenam os estudos de gênero e sexualidade. O termo “natural” pode ser manuseado a favor da diversidade. Porque cai como uma luva (de boxe) em mãos calejadas pelo debate contra qualquer tipo de opressão e discriminação negativa.
Nesse jargão de natural e não-natural, a heteronormatividade é antinatural – no sentido de que não é universal. Porque os estudos de etologia (comportamento animal) apontam para diversidade de comportamento nas espécies animais. Basta ler um algum relatório de pesquisa. Em 2009, Marlene Zuk (Universidade da Califórnia) e Nathan Bailey (Universidade da Califórnia) publicam estudos consistentes a esse respeito, listando várias espécies animais com relações homossexuais. Por isso, não é natural que as pessoas que nascem com pênis façam somente coisas de homem. Por um motivo, essas tais “coisas de homem” são construídas, elas não existem. Assim como, as pessoas que nascem com aparelho reprodutor feminino não possuem um desejo irresistível pela maternidade. Ser mãe não é o destino das mulheres.
Os estudos de gênero explicam que as representações culturais são variadas e que a diversidade é inerente à condição humana. Quando o papo descamba para antinatural e ideologia de gênero. Antinatural é postular uma única forma de expressão da sexualidade. E, a tal ideologia de gênero? É coisa de quem defende a metáfora das cores rosa (meninas) e azul (meninos). Uma forma de dizer: o patriarcado, a submissão feminina e ataques diretos ou indiretos a lésbicas, gays, bissexuais e todas as pessoas transgêneras são coisas normais. No continente africano, especificamente no contexto do povo Dagara, pessoas sempre se casaram com pessoas, não importa se são do mesmo sexo ou oposto. Isso nunca foi um problema. Afinal, vestir rosa ou azul é coisa de gente.
Renato Noguera
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