Mulher Real
Comecei a escrever estas linhas ao som de "cry me a river", na voz de Ella Fitzgerald. Penso que vocês leitores dessa coluna, já imaginam, essa cena: Eu num puro glamour, taça de vinho na mão ao lado do computador de ultima geração, a meia luz num abajour vintage, num agasalho lindo em preto, com óculos tipo gatinho, delineador perfeito nos olhos a la Clarice Lispector, salto ligeiramente alto, calça skinny de cós alto e tudo mais que a imaginação permite.
Sinto desapontá-los! Escrevo de Porto Alegre (RS), onde nesse momento, amargo um frio de 12 graus com sensação térmica de oito. Escrevo no computador do meu namorido, o meu já desgastado pela ação do tempo, se desliga ao mínimo toque. Uso uma calça de pijama confortável velha e ridícula. Um agasalho de lã preto, cheio de bolinhas e fiapos. Chinelo e meias completam a visão dantesca, mas incomensuravelmente confortável. Na mesa uma pequena bagunça: uma bacia com restos de pipoca, uma garrafa plástica velha que uso para fazer barulho e assustar Valentim, meu cachorro bebê que faz xixi pela casa toda. Uma caixa do correio com um "recebido do dia" (um lindo par de óculos escuros). Uma sacola verde de farmácia, com apetrechos para fazer curativos (estou com ferimento no pé). Chaves, carregador, um copo de cor laranja berrante, um tubo de pomada amassada. No apartamento acima do meu, tenho a impressão que bailarinos de danças típicas da Russia estão ensaiando alguma coreografia, pelo som das pisadas.
Em meio a esse mini caos, algo muito importante sobre a mesa: minha carteira de identidade. Usei ela pra receber o carteiro e aqui ela ficou. Não pude deixar de querer escrever sobre isso: A mulher glamourosa dos palcos e a mulher real da carteira de identidade. A imagem projetada e a imagem real.
Mulheres fazem parte do imaginário fetichista de homens somente por ser mulheres. Mulheres trans também. Mulheres negras também. E eu que sou tudo isso? Quantas vezes fui interpelada sobre o lugar onde moro, com perguntas sobre o que uso em casa, perfume e todas essas trivialidades? Teve uma fez que indo ao supermercado (que fica a duas quadras da minha casa) usando calça de moletom camiseta e cabelo preso num coque desalinhado, fui interpelada por um "fã" que queria saber se eu estava bem." Você está bem? Tá com uma cara horrível!", disse ele assim, na lata. Certamente por ter me visto figurinada, maquiada e glamourosa para algum show outrora por aí, e naquele momento, ao me encontrar no supermercado, me viu assim,"fantasiada" de gente comum. Quis fazer esse comparativo doido pra expressar a minha vontade ,de dar importância a essa mulher comum, "fantasiada" de dia a dia. Apresentar nosso eu real, longe do imaginário fetichizador ou de conto de fadas.
Pois bem, vim me apresentar pra vocês e dizer que vamos compartilhar muitos desses momentos aqui. E que estaremos juntxs pra construir algo. Sim, construir! Já estou cansada de gente "descontruída". Quero construir! Construir uma imagem real, de mulheres reais mas assim como eu: TRANS E NEGRAS EROTIZADAS, MENOSPREZADAS, OBRIGADAS A TER UMA FORÇA DESCOMUNAL, PARA PODER PROVAR QUE SÃO QUEM SÃO! Uma fonte de escrita, fala e escuta pra muitxs de nós. Sim somos muitxs, iguais e diferentes, lutando pra ter vez e voz! Quero ser esse canal! Pretensioso, eu sei. Mas ali, na minha carteira de identidade , que lutei três anos e meio pra conseguir diz "Valéria Barcellos da Silva", Não uma imagem projetada irreal, mas a mulher real e maravilhosa que me permiti ser. Há muitxs de nós assim. Bora nos conhecer?
Bora colocar a imaginação de lado por uns minutos, e conhecer mulheres reais de roupa desleixada, e muito a dizer?
-Que maravilhoso te conhecer..Prazer imenso, satisfação gigante sou Valéria!
Valéria Barcellos
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