Negacionismo e diálogo: reconhecer o negacionista como sujeito.

Imagem Banksy

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 A CPI da COVID tem oferecido cenas e discursos que chocam em larga medida quem busca viver pautado por uma certa racionalidade, compreendendo a importância do conhecimento científico, baseado em dados e evidências.

Enquanto espaço público de exercício do poder e de disputa, ela permite a promoção de discursos distintos com vistas a influenciar os expectadores que acompanham os debates, bem como promover os interesses colocados em jogo. Todos utilizam tais ferramentas, mas não deixa de ser curioso ver o absurdo de argumentos que são invocados em determinados momentos pelos senadores que pretendem defender as atitudes tomadas pelo poder executivo.

De minha parte, é difícil acompanhar algumas das falas do Senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) sem ser tomado por um sentimento de incredulidade ou raiva.

Mas aqui, menos preocupado em como isso se dá na macro esfera pública e nas relações entre os grupos, quero pensar esse tema a partir da dimensão do sujeito, uma vez que o confronto com os negacionistas está presente em nosso dia-a-dia e por vezes é muito difícil de sabermos como lidar em determinada situação.

Será que contesto quem defende o uso da cloroquina? Peço para a pessoa colocar a máscara corretamente? Vale a pena confrontar um desconhecido?

No último final de semana, tive a oportunidade de ler o livro recentemente lançado pela professora Elika Takimoto, “Como dialogar com um negacionista”, que lança luzes sobre esse tema e nos provoca a olharmos para nós mesmos antes de mais nada. Em seu primeiro capítulo, a professora abre o livro tratando do negacionismo acerca do consumo de proteína animal, do sofrimento envolvido e os danos ambientais decorrentes o que, em larga medida, é ignorado por quem consome carne.

Mostra que mesmo pessoas ditas “esclarecidas” tendem a preferir estudos e dados que corroborem sua visão de mundo, tendo maior resistências em aceitar aqueles lhes retiram do conforto.

Ou seja, é fundamental reconhecer que qualquer pessoa é negacionista em certa medida, de acordo com as matérias e assuntos que mais lhe interessam ou são caros.

Em suas obras, Jean-Paul Sartre reconhece o sujeito enquanto obra inacabada, em busca de uma essência que lhe é faltante. A liberdade do humano se realiza em seu projeto, sempre em ação e movimento. Nessa busca por aquilo que lhe falta, o ser desenvolve um projeto que, em última instância, quer que ele seja universal.

Ou seja, o modo de vida que imagino para mim, é o mesmo que quero para toda a humanidade. Para esse projeto, Sartre também reconhece o conceito da responsabilidade, uma vez que o sujeito é responsável por seus atos que tenderão ao todo.

Para ele, ainda, o sujeito percorre sua trajetória de maneira irrefletida, tendo apenas a noção do que é a partir do olhar do outro. Essa relação com o outro é de extrema importância no seu pensamento, a qual ele compreende que sempre será conflituosa em razão da objetivação de um pelo outro.

O outro me enxerga como uma existência dada e imutável e não como o movimento e ação que eu sou, em constante transformação. Assim como nós fazemos sempre: “ele é simpático”, “ele não sabe o que fala” e assim por diante.

Todos nós, ao nos depararmos com pessoas cuja origem e ideias estão diametralmente opostas daquelas que fazem parte do nosso projeto tenderemos a objetivação, significação e a avaliação do outro, que será quase impossível de ser superada, dada a dimensão conflituosa da relação, na forma como estabelece Sartre.

Isso pode levar a que o ódio seja despertado, encerrando qualquer possibilidade de convívio.

O negacionismo científico, seja daqueles que negam a influência humana nas mudanças climáticas, como a negação dos efeitos da doença causada pelo Sars-Cov2 e as medidas para o enfrentamento da pandemia, como uso de máscaras, isolamento social, e ainda as dúvidas colocadas sobre a eficácia das vacinas, colocam em polos diametralmente opostos aqueles que reconhecem e defendem a importância do saber científico, daqueles que o negam.

Por isso, para que o diálogo seja possível, é fundamental que relembremos aquilo que falta em nós e também nos darmos conta do nosso próprio negacionismo, além de tentar enxergar, no outro, um ser que também está em transformação e carrega em seu projeto as influências daquilo que aprendeu e atravessou em sua vida.

Isso passa por reconhecer que a defesa cega e irrefletida de determinada posição, desprezando todos os argumentos contrários a priori, como também sem reconhecer os potenciais destrutivos ou usos interessados ideologicamente da ciência podem, num vocabulário sartriano, ser encarado como próximo de seu conceito de má-fé.

Eu me apoio na defesa de algo que, em verdade, pouco conheço, mas que alivie o peso de que eu o conheça.

Elika nos provoca a romper com o véu da ingenuidade e compreender o fazer científico como processo social e político, que pode ser manipulado por interesses que não promovam a emancipação humana, mas, ao contrário, que agravem problemas ambientais e sanitários que enfrentamos, principalmente quando se trata da ciência aplicada de interesse de industrias.

Ou seja, reconhecer que essa é também uma prática social inserida em um sistema econômico que não é livre de interesses. Além disso, é também reconhecer a liberdade de pensamento, bem como reconhecer a importância da sabedoria de povos originários e que observam o mundo por uma ótica diferente daquela dada pelo conhecimento europeu, de modo a incorporar novas visões ao meu projeto. 

Para isso, é necessário não esquecer que o sujeito se realiza na ação, o que permite sempre mudar o seu enfoque e a maneira de se relacionar com o mundo e com os outros, estando esse se fazendo e transcendendo a si mesmo, o que torna impossível atribuir um valor superior a qualquer um.

O valor se dá na vida que é vivida. E essa pode ter, por projeto, viver e dialogar, construindo novos significados e modos de existência, uma vez que o universal se manifesta nas condutas subjetivas.

Pode ser difícil, angustiante e por vezes certamente será motivo de frustração, mas se queremos uma existência melhor para a toda a humanidade, nós temos a responsabilidade de, em nosso projeto de vida, lembrar que não somos mais importantes ou superiores que os outros, mas de buscar formas de que nossa posição seja bem compreendida.

A defesa da ciência, a partir da divulgação de seus saberes, precisa penetrar naqueles que muitas vezes as negam, reconhecendo que ela é também um projeto inacabado e passível de falhas.

É também permitir que o outro tenha oportunidade de se expressar e de se transformar. É nos colocarmos em ação, a qual pode consistir num diálogo – verdadeiro, em que ambos se escutem – com aquele que mais discorda de nós. Antes da raiva e do ódio, a conversa e a escuta.

Arthur Spada

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