Negligência nas negligenciadas

Robert Hooke - cientista e revolucionário na micrographia, observação por microscópio.

Robert Hooke - cientista e revolucionário na micrographia, observação por microscópio.

PARECE REDUNDÂNCIA. MAS NÃO É. É NEGLIGÊNCIA AO QUADRADO MESMO.

Doenças negligenciadas são aquelas de cunho infeccioso que acometem a população mais vulnerável socialmente. Para ficar mais claro, são as doenças que ocorrem em populações mais pobres, pertencentes aos continentes Africano, Asiático e Americano. Juntas, ocupam importante espaço em termos de morbidade e mortalidade. Além disso, mesmo sendo doenças de tratamento relativamente fácil, há pouco investimento para o desenvolvimento de novos fármacos, o que faz com que o arsenal de drogas disponíveis seja restrito. Neste sentido, se pensarmos, conseguimos, mesmo sem ser um profissional da saúde, pontuar as doenças negligenciadas da nossa comunidade. Dengue, Leishmaniose, Chagas, Tuberculose, Esquistossomose, Filariose, dentre tantas outras, compõe o grupo das doenças negligenciadas no Brasil. 

Os textos abaixo foram retirados dos boletins epidemiológicos publicados este ano e trazem informações epidemiológicas sobre as doenças que continuam assolando o nosso país. Para quem não sabe, Epidemiologia é a ciência que estuda a frequência, distribuição e as causas das doenças. Ao pensar na frequência e distribuição das doenças, entendemos que esta avaliação deve ser realizada a partir das variáveis “pessoa”, “lugar” e “tempo”, ou seja, quem fica doente, onde os casos estão localizados e em que tempo essa doença se estabelece.

“No Brasil, em 2019, foram diagnosticados 73.864 casos novos de TB (tuberculose), o que correspondeu a um coeficiente de incidência de 35,0 casos/100 mil habitantes. Embora tenha sido observada uma constante tendência de queda entre os anos de 2010 e 2016, o coeficiente de incidência da tuberculose no país aumentou nos anos de 2017 e 2018 em relação ao período anterior. Nesses dois anos, houve uma tendência de queda na incidência entre os maiores de 65 anos, e de aumento na incidência nos menores de 10 anos e nos de 10 a 64 anos.” Boletim epidemiológico Número Especial, Março 2020.

“No mundo, foram reportados à Organização Mundial da Saúde (OMS) 208.619 casos novos de hanseníase em 2018. Desses, 30.957 ocorreram na região das Américas e 28.660 (92,6% do total das Américas) foram notificados no Brasil. Do total de casos novos diagnosticados no país, 1.705 (5,9%) ocorreram em menores de 15 anos. Quanto ao Grau de Incapacidade Física, entre os 24.780 (86,5) avaliados no diagnóstico, 2.109 (8,5%) apresentaram deformidades visíveis. Diante desse cenário, o Brasil é classificado como um país de alta carga para a doença, ocupando o segundo lugar na relação de países com maior número de casos no mundo, estando atrás apenas da Índia (OMS, 2019).” Boletim epidemiológico Número Especial, Janeiro 2020.

“Estima-se que cerca de 1,5 milhões de pessoas vivem em áreas sob o risco de contrair esquistossomose. Os estados das regiões Nordeste e Sudeste são os mais afetados sendo que a ocorrência está diretamente ligada à presença dos moluscos transmissores. Atualmente, a doença é detectada em todas as regiões do país. As áreas endêmicas e focais abrangem os Estados de Alagoas, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte (faixa litorânea), Paraíba, Sergipe, Espírito Santo e Minas Gerais (predominantemente no Norte e Nordeste do Estado).” www.saude.gov.br/svs/saude-a-a-z

“Em 2020, foram notificados 2.184 casos suspeitos de sarampo, destes, foram confirmados 338 (15,5%) casos, sendo 329 (97,3%) por critério laboratorial e 9 (2,7%) por critério clínico epidemiológico. Foram descartados 291 (13,3%) casos e permanecem em investigação 1.555 (71,2%). A positividade de casos confirmados, entre os casos suspeitos, foi de 31%.” Boletim epidemiológico n 9, Março 2020.” 

“Chuvas intensas têm atingido os estados da região Sudeste do país desde o dia 17 de janeiro, em virtude da influência de uma Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS) e de um ciclone extratropical que se formou próximo da costa do Espírito Santo e Rio de Janeiro, resultando em altos índices pluviométricos em curto período de tempo em áreas localizadas.. Esses eventos provocaram impactos na infraestrutura de serviços essenciais e nos serviços de saúde, com destruição e/ou danos às unidades de atendimento médico-hospitalares, unidades básicas de saúde, rede laboratorial, incluindo sede de secretarias de saúde. Esse cenário levou à necessidade de reorganização imediata da rede de atenção à saúde e de mobilização de apoio adicional para atendimento aos municípios atingidos.” Boletim epidemiológico 1, fev/2020 – COE Inundação.

O intuito de trazer esses dados é expor a nossa vulnerabilidade enquanto população, principalmente em se tratando de doenças infecciosas. É fundamental entender que as doenças já existentes, ou melhor, as doenças pré-COVID-19, precisam continuar sendo trabalhadas para alcançarmos o seu almejado controle. Obviamente, a manutenção das atividades de vigilância e controle dessas doenças devem considerar o atual cenário pandêmico que estamos vivenciando. Neste sentido, algumas atividades desempenhadas pelos agentes comunitários de saúde (ACS) e agentes de controle de endemias (ACE) por exemplo, devem ser, na medida do possível, reduzidas para que não ponhamos estes ou a própria população em risco. O uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) neste contexto, torna-se fundamental.

Da mesma forma, o investimento em pesquisas científicas dentro destas temáticas deve ser estimulado e cobrado. Mesmo com anos de estudos, existem ainda várias lacunas no conhecimento científico das doenças consideradas endêmicas. Até porque sabemos que, mudanças no comportamento dos vetores, dos reservatórios e a forma como estes interagem entre si e com os hospedeiros, podem provocar alterações no perfil de transmissão das doenças. E ainda, alterações ambientais e climáticas impactam na ocorrência de doenças infecciosas. Ou seja, estudos nesta linha também devem ser estimulados.

A temática de diagnóstico e tratamento das doenças infecciosas também é uma urgência, até porque, se consideramos que estas acometem populações vulneráveis, a possibilidade de agravamento e óbitos pode ser mais frequente do que se ocorresse em população não vulnerável. Eu falo de doenças infecciosas porque seguimos com a agenda não cumprida. Continuamos sem controlá-las, conforme demostrado nos trechos acima. Agora eu pergunto:

COM OS CORTES NO ORÇAMENTO DESTINADO À EDUCAÇÃO, INICIADOS EM 2019, IMPACTANDO OS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO E, POR CONSEQUÊNCIA, A CIÊNCIA, COMO PODEMOS CONTINUAR AS PESQUISAS TÃO NECESSÁRIAS?

Sou extremamente a favor de investimento para as pesquisas sobre o COVID-19, mas não em detrimento das outras tantas doenças existentes e que também precisam ser investigadas. Estas também são doenças de notificação compulsória. Para entrarem na lista, devem cumprir critérios de: magnitude, potencial de disseminação, gravidade, transcendência, vulnerabilidade e acordos internacionais. Entendo também que, devido à emergência, recursos devem ser priorizados. Entretanto, não podemos esquecer que outras tantas doenças continuam presentes no nosso país. 

Por outro lado, é durante esta pandemia que podemos fortalecer a nossa participação como agentes da nossa própria saúde e nos conscientizar sobre a nossa importância no processo ativo de controle de algumas destas doenças. Então, hoje é tempo de exercemos a nossa função enquanto cidadãos, lembrando que o dever do Estado no provimento de uma saúde universal, integral e equânime não exclui o dever do cidadão, da família e da sociedade. Convido-os então a uma reflexão. 

O QUE PODEMOS FAZER INDIVIDUALMENTE PARA IMPACTAR POSITIVAMENTE O COLETIVO?

Escolher não deixar água parada, não acumular entulhos e ou matéria orgânica, não deixar atrasar a carteira de vacinação, principalmente aquelas da primeira infância, é um começo. É tempo de mudar de hábitos, se alimentar melhor, se exercitar mais. Tanto a mente como o corpo. Podemos fazer mais pela nossa saúde. 

E em paralelo, lutar pelo nosso sistema de saúde tornou-se fundamental. Para quem critica o SUS, sugiro pensar na relevância atual de se ter plano de saúde. Caso você seja infectado pelo COVID-19, onde você acha que seria atendido? Atualmente existe diferença no atendimento público e privado? De onde fazem parte os hospitais de referência, aqueles em que os pacientes serão direcionados caso expressem sinais clínicos graves? Onde temos as equipes médicas mais bem preparadas, em termos humanitários principalmente, e dispostas a atender os pacientes? Onde a saúde não para? Falamos da assistência, mas a vigilância não para também. E são em situações de lucidez mediante o caos, que conseguimos enxergar a importância do nosso sistema. A nossa situação seria muito pior caso não tivéssemos um sistema público de saúde.

Enfatizo ainda que esta coluna não tem o intuito de comparar doenças ou criar uma espécie de ranking. Não faz absolutamente nenhum sentido relativizarmos o COVID-19 ao compararmos a taxa de letalidade dele com a taxa de outras doenças – “mata menos que a dengue”, já ouvi falar. Assim como não faz sentido não nos preocuparmos com as doenças reemergentes como o sarampo, cuja a cobertura vacinal na última campanha “chegou” a 1% por conta do pânico da população devido ao COVID-19. Isso não faz nenhum sentido e vocês sabem por quê? Porque todas estas doenças continuarão existindo. A ocorrência de uma não anula o risco para tantas outras. E se continuarmos a compará-las, priorizando umas em detrimento de outras, o risco de desfechos desfavoráveis devido a coinfecções será real. Acumularemos doenças. Pensem nisso.

Rafaella Albuquerque e Silva 

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