Não foi por essa democracia que vivenciamos que eles lutaram

Nova escola

Eu cresci percebendo que existe a minha verdade, a sua verdade e a real verdade. Não foi fácil entender isso, porque para tal feito, eu preciso assumir que a minha verdade é enviesada. Por mim. Pelas minhas experiências e crenças. E acho que ninguém consegue facilmente assumir isso.

Para facilitar um pouco, para mim pelo menos, eu penso nas informações que adquiro considerando o trabalho que exerço na saúde pública. Para os estudos epidemiológicos (que vocês já tiveram oportunidade de ler em colunas anteriores), na condução de estudo de intervenção, em que normalmente testa-se um novo medicamento (ou associação de medicamentos), vacinas e outros imunobiológicos, além de novas ferramentas; a primeira característica que valida a seriedade e evidência gerada pelo estudo é o “mascaramento”.

Nem as pessoas, nem os pesquisadores diretamente ligados, e inclusive aqueles que analisariam os dados, devem saber a qual grupo pertencem os participantes do estudo. Porque ao saber, pode-se, mesmo que inconsciente, enviesar os resultados. Bom, isso me ajudou um pouco a trabalhar a minha mediocridade em ser um ser humano pouco evoluído nesta terra de provações.

 “Não julgue sem ouvir os dois lados.”

 Um erro básico nessa frase, mas que não será tema dessa coluna, a necessidade urgente de controlarmos o exercício do julgamento sobre outras pessoas e situações. Mas isso ficará para a próxima. Vamos nos fixar na urgência que temos em saber que sim, dependendo das nossas experiências, da criação, do nosso grupo de convívio, das nossas crenças, geramos verdades nossas e que muitas vezes são vistas de forma totalmente diferente por outras pessoas.

Eu assisti recentemente “Marighella”, depois de muito tempo esperando. Pera, para que vocês entendam, antes de mais nada, eu quero fazer alguns relatos. Cresci em uma família tendo como principal referência intelectual o meu pai. A cada dois dias ele estava com um livro diferente. Discutia e discute com primazia qualquer assunto.

Sempre brigou pelos direitos dos trabalhadores (que o incluía) e me apoiou em todas as situações adversas que eu passei na minha infância, considerando a minha luta por direitos na escola, na rua ou em qualquer relação afetiva (ou não) que eu tive. Qualquer problema que perpassasse por abuso de poder, por parte de quem fosse, ele me apoiava.

“Se você estiver dentro do seu direito, não fique calada”, “apoie os seus amigos”, “manifeste na diretoria e se tentarem te tirar se agarre na pilastra”.

Ele era a minha referência de luta. Nunca foi acumulador de posses. Nem podia, porque tem sete filhos, rs... Mas sempre foi “mão aberta”. Fez e faz o que pode por todos: familiares, amigos e até conhecidos. Trabalhou a vida inteira, desde a infância, feito um condenado, para prover o que era necessário para ele, e para os outros.

Tem uma história difícil, assim como muitas pessoas do tempo dele. É um vencedor.

Eu gosto de Chico por conta dele. Eram viagens e mais viagens ouvindo as fitas cassetes que eu sabia de cor. A coleção “o amante”, “o poeta”, “o político”. Um dia, escutando “o político”, que versava sempre sobre a época da ditadura, eu perguntei para ele:

“Pai, e na época da ditadura? O senhor não ia para as ruas?”.

E ele me respondeu que sim, que ele ia, mas que infelizmente à época ele ia trajado de militar. Eu sabia que antes de eu nascer, ele havia servido ao exército, mas nunca pensei que poderia ser exatamente nestes 21 anos que estivemos sobre esse período tenebroso.

Ele me relatou que esta é uma época em que ele não fala porque é uma fase obscura da vida dele, mas que dentro da pouca gerencia que tinha, fez de tudo para minimizar as brutalidades que acontecia. Coisas aparentemente pequenas, mas que fizeram diferença porque tive oportunidade de ter acesso a relatos emitidos pelas pessoas que o conheciam.

Durante o turno dele, ninguém importunava as mulheres. Os grupos amigos ficavam juntos. A televisão e/ou o rádio ficava na cela.

Ele foi “carcereiro” da sogra da minha irmã (minha irmã quase morre do coração quando soube) e tivemos a oportunidade de confirmar estes feitos durante um jantar com ela. Ela disse que todos ficavam aliviados quando era ele. Ela fazia artesanato com uma amiga, de dentro da prisão, e ele vendia para elas.

Meu pai contou muitas as loucuras, mania de perseguição, que pairava na cabeça dos comandantes das mais altas patentes do exército. Realmente um total absurdo. Mas acredito que, assim como ele, existiam outros. Que não exerceram nenhuma atrocidade, mas que também não puderam impedir que acontecesse. 

Pois bem, assisti ao “Marighella”, que conta a história de Carlos Marighella, negro, neto de africanos, deputado, revolucionário.

Era contra o regime militar, lutava pela liberdade de expressão, pela liberdade da imprensa, pela possibilidade de discussão de ideias e pensamentos opostos. Lutava por todos os conceitos que permeiam pela palavra “liberdade”. Cada cena era um murro no estômago. Foi preso, perseguido, torturado. Por fim, foi morto sem possibilidade de defesa.

A notícia do seu assassinato foi modificada, com uma versão que fugia à verdade. Assim como aconteceu com a morte de Zuzu Angel e seu filho, com a tortura de Frei Tito e Frei Beto e com tantos outros que lutaram pela liberdade de todos e reestabelecimento da democracia. Chorei em silêncio, porque sei que, mesmo com todo o estímulo que tive, não tenho um décimo da coragem de quem lutou contra a ditadura teve.

Chorei porque tentaram abafá-lo e enganar a população chamando-o de terrorista. Chorei pelo medo que todos da resistência passaram. Chorei porque alguns de nós, brasileiros, que pedem intervenção militar, sem saber talvez o que isso significa; ou pior, sabendo. Chorei porque tem um demônio que homenageia um dos mais famosos torturadores da história. Chorei, porque a história sempre foi permeada por fake news. Mentira mesmo.

Uma vez, na faculdade, conversando com uma amiga sobre a ditadura, ela me diz: “Mas na ditadura só foram perseguidos bandidos, não?”

Ela falou numa convicção que beirou a inocência, na minha concepção. Quando vi o seu olhar bobo, lembrei que ela estudara no colégio militar. Conveniente eles mudarem a história né? Esse foi o primeiro impacto que tive, percebendo que as visões de cada um dependem de como eles foram alimentados ao longo da vida. Minha amiga, ótima pessoa, mas enviesada pela versão única dos militares. Eu, de família esquerdista desde sempre, com a minha verdade, mas também com o olhar de quem vivenciou de perto.

Assim, trago novamente a necessidade de avaliar o que sabemos, como fomos alimentados, se não estamos sendo extremistas no pensamento, como podemos discutir opiniões contraria e a urgência em sempre nos colocar à prova.

Quem hoje defende a ditadura tem uma visão deturpada do que foi. Talvez sejam as mesmas pessoas condicionadas pelo “soma” tomado pela população no livro “Admirável Mundo Novo”; ou pela desinformação, inocência e fake news enfatizados pelos animais do livro “A revolução dos bichos”; ou pelo sentimento de superioridade demonstrado nos “Contos de Aia”.

 Sinto-me na obrigação de rever tudo o que conheço hoje. Ler mais sobre o capitalismo, o socialismo, o comunismo, o liberalismo, a ditadura, o cangaço, o racismo estrutural, o preconceito geral e tantos outros temas que estão sendo discutidos hoje com superficialidade. Hoje em dia tem gente que diz que o Mac Donald ou a Globo são comunistas. O Brasil tá virado? Parte da população está imbecilizada.

 Hoje choro porque não foi por essa democracia que vivenciamos que eles lutaram.

 Rafaella Albuquerque

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