Nós que aqui estamos por vós não esperamos!
Ainda me surpreendo com a tática de invisibilidade e mais ainda da naturalização desta invisibilidade do sujeito negro nas artes de alcance de massa. Uma moradora do subúrbio do Rio de janeiro, passista de escola de samba, mãe solteira ainda na adolescência, cria três filhos sozinha com um emprego de costureira e doméstica na Zona Sul do Rio de Janeiro. No imaginário social, estabelecido a partir de uma construção racista que é a que temos, essa personagem seria de melanina acentuada ou menos pigmentada. Negra dentro dos parâmetros estabelecidos pelo IBGE.
Mas na teledramaturgia brasileira, se essa personagem é protagonista da trama e não terá a discussão racial como tema, ela é imediatamente embranquecida. Ela se torna uma mulher loira de olhos claros...Pasmem!! Não que não existam mulheres com este fenótipo dentro deste perfil social. Mas todos sabemos que a maioria delas NÃO SÃO LOIRAS DOS OLHOS CLAROS!
Quando o universo do sujeito negro é retratado, ele é imediatamente colocado dentro de um estereotipo pré-estabelecido que só serve para ratificar preconceitos e lugares sociais já definidos: o negro como marginal, traficante, burro, desonesto, negão gostoso, a mulher negra sexualizada, empregada, servil.
O PROTAGONISMO NA VERDADE É O RACISMO REAFIRMADO.
Quando o personagem é construído fora desse perfil danoso, ele é retratado de forma frágil, sem contexto ou sem história, sem núcleo, sem um drama que o sustente. Se por acaso tiver um drama bacana ele será vilanisado para que não haja empatia com o mesmo (vide a definição de negro pernicioso no livro A Cena em Sombras de Leda Maria Martins). Ou ainda com uma trama em torno de si, mas que se justifica pelo racismo, como um médico que enfrenta diversos problemas no trabalho e na vida pessoal porque é negro. Tudo gira em torno de sua cor. De novo o racismo como protagonista do drama, porém pelo olhar do branco. Porque, normalmente a mão que escreve a história não é negra e desconhece as particularidades desse universo fora do estereotipo. Algumas obras fogem a essa regra (ainda bem!), mas na maioria dos casos é assim que funciona.
Quando finalmente temos um universo onde naturalmente identificamos como negro por retratar uma camada social onde esse sujeito esta presente em maioria, ocorre um embranquecimento forçado desse personagem, porque este é protagonista. E, no caso, a mulher negra, em sua forma real, com suas ancas largas, seu “nariz de batata” sua nádega grande pela lordose, seu linguajar suburbano, na concepção da mão branca que escreve, não pode ser a mocinha. Disputada pelos galãs da vez. Mesmo que um desses galãs seja negro.
É preciso ressaltar aqui também a diferença entre o preconceito sobre a presença do homem negro e da mulher negra. Esta última sempre mais desvalorizada. Aceita sim numa posição de destaque, desde que suas formas se aproximem ao máximo do padrão estético branco estabelecido. É... a vida é dura! Causa um incomodo muito grande ver esse enquadramento forçado. É como ver um black face as avessas. Nos empurram goela abaixo e muita gente engole.
Alguns responsáveis por trás dos roteiros de produtos televisivos, por exemplo, argumentam a ausência de atores negros interpretando determinados personagens que comumente não seriam relacionados ao seu fisic, com o argumento de que precisam “retratar a realidade”. Mas na verdade, o que se quer retratar é a realidade que se quer vender com o intuito de manutenção de uma estrutura já estabelecida e que favorece uma parcela da sociedade que se diz maioria porque detém o poder em suas mais variadas vertentes. Mas não são! E isso se faz de forma consciente ou não visto que vivemos num contexto onde o racismo é estrutural, ou seja, constitui as bases da formação da sociedade como a conhecemos.
COMO SE EXPLICA UM PAÍS ONDE MAIS DE 53% POPULAÇÃO SE IDENTIFICA COMO NEGRA E PARDA TER UMA PRODUÇÃO TELEVISIVA REALISTA COM UM ELENCO DE MAIS DE 80% DE PESSOAS BRANCAS E ARGUMENTAR QUE “RETRATAM A REALIDADE”?
Uma das possibilidades de romper com esse ciclo é colocar a caneta na mão do sujeito negro. Mas ainda não conseguimos esse feito de forma significativa visto que nosso drama, apresentado da forma como desejamos ver, na avaliação de quem detém o poder, não é interessante, ou não interessante o suficiente. Ou quando interessante o suficiente, é embranquecido.
Por hora, fica um enorme incômodo de ver uma personagem que sabemos negra e que teria uma infinidade de atrizes negras muito ou pouco pigmentadas, dentro ou fora de um padrão negro aceitável, que fariam brilhantemente o papel, sendo feita por uma atriz branca. Loira! Uma atriz indiscutivelmente competente! Aliais, não falo aqui de competência nem de talento. Discutir a questão por esse âmbito seria por demais reducionista e argumentativamente frágil. Falamos de utilização da arte como um veículo de manutenção de um pensamento dominante. Até Salvador, pouco tempo atrás, ficou majoritariamente branca! E por mais que se tenha gritado, o protagonismo continuou branco, sim!
Quando pensamos numa passista de escola de samba, na maioria das vezes descrevemos uma mulher negra. Mas a televisão nos vende que ela é loira dos olhos claros e a maioria compra sem discutir. E se alguém fala o contrário está de mimimi.
Enquanto isso, nós que aqui estamos por vós não esperamos. Mas continuamos lutando por uma outra “realidade retratada”.
Tatiana Tibúrcio
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