O afeto que me habita

M8 Quando a morte socorre a vida

M8 Quando a morte socorre a vida

Nesse fim de ano estou me propondo a fazer as pazes com muitas coisas que os últimos tempos me fez deixar de acreditar.

Esta semana tivemos a estreia no Festival do Rio de M8 QUANDO A MORTE SOCORRE A VIDA, filme de Jeferson De em que eu tive a honra de participar ao lado de Ju Colombo, Mariana Nunes, Juan Paiva, Raphael Logam entre outras feras. E tivemos o encerramento da primeira temporada de O AMOR COMO REVOLUÇÃO, espetáculo de Henrique Vieira com direção de Rodrigo França e que eu faço a preparação de elenco. 

O amor como revolução

O amor como revolução

É muito curioso que nos dois trabalhos, temos a constatação de uma verdade. Porém, por olhares muito diferentes, mas de alguma maneira, iguais. Em M8, temos a história de um estudante de medicina negro cuja mãe é enfermeira, que entra na faculdade e se dá conta que todos os alunos são brancos, mas todos os corpos por eles dessecados nas aulas de anatomia são negros. Corpos doados, indigentes. Até que um dos corpos abre os olhos e encara fixamente o estudante que entra então numa busca para conseguir enterrar esse corpo que simbolicamente representa todos os filhos, e pais, e irmãos, e primos, e netos; cada jovem negro que morre a cada 23 minutos nesse pais. Ele resolve enterrá-lo para dar algum alento ao coração das mulheres negras que sofrem pela perda de uma parte de si. Essa atitude nos apresenta uma possibilidade de reação ante a dor: o amor ao próximo em forma de ação.

Em AMOR COMO REVOLUÇÃO, Henrique vieira nos traz, a partir de um drama pessoal (cegueira parcial, um acidente de carro, a aceitação de sua condição de homem negro, a indignação com as mazelas humanas impostas pela sociedade e pelos governantes) a reflexão sobre as possibilidades de reação ante a dor: o amor como instrumento de transformação

Nas duas obras, por caminhos diversos, mas que em alguns momentos se esbarram, temos o amor como a principal ferramenta de revolução. 

Não o amor romântico, passivo, em alguma medida egoísta porque mostra “como é grande e bonita a minha dor e grandioso o meu gesto”. Mas um amor ATIVO. TRANSFORMADOR. REATIVO. Que acha um caminho para mudar o que esta sendo imposto. Um amor que propõe um renascimento, concreto (Henrique) ou subjetivo (M8), para mudar efetivamente o curso do rio. E não apenas para emocionar e lavar nossas consciências. 

Nas duas obras vemos um amor que nos convoca para a luta. Mostrando que as situações não têm apenas duas faces, mas se apresentam como um prisma repleto de possibilidades, de caminhos, que podemos e devemos seguir.

Lembrei muito do pastor Martin Luther King que pregava esse tipo de amor em sua luta pela igualdade de direitos e justiça racial. Lembrei das batalhas que travamos todos os dias no nosso pequeno universo para nos mantermos vivos sem perder a fé ou a esperança num futuro verdadeiramente justo e igualitário. Lembrei da minha mãe, da minha avó, da minha madrinha linda, da Dona Ruth, Dona Léa, da mãe da Camila minha aluna que morreu aos 19 anos de um linfoma que a rede pública de saúde tratou durante muito tempo como infecção na garganta até que nada mais pode ser feito. Lembrei de mim, lutando cada dia para manter a sanidade diante de uma realidade tão insana em sua não aceitação e as vezes, demonização das diferenças. Lembrei das Mães de Maio, das mães da Agatha, da mãe Marielle, da mãe doAnderson, das mães das comunidades e periferias desse brasil (que no momento está com “b” minúsculo mesmo). Mas lembrei principalmente que cabe a cada um de nós, no macro ou no microuniverso fazermos nossa pequena revolução de amor e transformar a realidade que nos rodeia. 

Durante muito tempo me incomodava e até irritava essa história de que “o amor salva”. Porque eu achava que isso era ilusório e comodista e o que para mim era pior: passava a ideia de que a responsabilidade estava nas mão do outro e esse outro era Deus, a fé, ou seja lá no que as pessoas acreditavam. E me incomodava pensar que a mudança na minha vida dependia de uma fé cega em algo ou alguém(ns) que estava fora de mim. Mas não! Essas energias todas estão dentro de cada um de nós. 

Se não me engano, o evangelho de Tomé (considerado apócrifo) diz que “Rachai uma madeira: eu estou ali. Levantai uma pedra e me achareis”. ELE esta dentro de nós. Quando penso nos Orixás que tem a sua energia presente nos elementos da natureza como Oxum e as águas correntes de um rio, eu penso no corpo humano formado por 60% aproximadamente de água num indivíduo adulto e 80% nas crianças. É Oxum fluindo e reinando dentro de cada um de nós, para quem acredita. 

Entendi então, que isso que eu considerava estar para além de mim, na verdade, me compunha! Estava em mim! Sou eu! Eu sou uma com essa energia poderosa e criadora de tudo o que é natural e vivo. “Amai ao próximo como a ti mesmo” não é romântico, é revolucionário e transformador. Dependendo do ponto de vista. É um amor que nos convoca para batalha, para a ação, para a reação. Seja de dentro para fora, seja de fora para dentro, esse fluxo é constante e ininterrupto. Afinal de contas, como diz o pastor Henrique Vieira, “Jesus era um homem negro, pobre, periférico, morto pelo Estado sob o aplauso dos cidadãos de bem”. E foi morto por pregar o amor como revolução. É nesse amor que eu acredito. No amor de M8. No amor do personagem do Menino na peça. No amor que move montanhas. No amor que transgride e transforma.

Esse ano que se aproxima, estou me propondo a fazer as pazes com o amor...

Tati Tibúrcio

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