O amor deve entrar na cesta básica?
O título convida para uma breve história e, pelo menos, duas definições.
No Brasil, a cesta básica surgiu através do Decreto-Lei N.º 399, de 30 de abril de 1938. No Diário Oficial da União Seção 1- 7/5/1938, na página 8600 (Publicação Original), encontramos os dispositivos que definem que o salário mínimo deve ser capaz de arcar com despesas básicas diárias.
Art. 6º O salário mínimo será determinado pela fórmula Sm = a + b + c + d + e, em que a, b, c, d e e representam, respectivamente, o valor das despesas diárias com alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte necessários à vida de um trabalhador adulto.
§1º A parcela correspondente à alimentação terá um valor mínimo igual aos valores da lista de provisões, constantes dos quadros anexos, e necessárias à alimentação diária do trabalhador adulto[2].
No documento, existe uma lista de alimentos do que é denominado então como ração-tipo. Mais tarde, esta listagem foi chamada de cesta básica: conjunto de produtos de necessidade básica destinado ao consumo mensal de uma família de quatro pessoas.
Em 1938, a cesta básica era formada por grupos de alimentos: carnes; queijo e manteiga; banha e óleos vegetais; cereais; farinhas e raízes; leguminosas; frutas; açúcar; café; leite. No ano de 2003, durante o Governo Lula, o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil disse: “– É preciso colocar a cultura na cesta básica brasileira”[3]. Em 27 de dezembro de 2012, durante o Governo Dilma Rousseff, o Vale-Cultura se tornou realidade para pessoas contratadas pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que recebiam até cinco salários mínimos.
Pois bem, a ideia simples surgiu a partir de conversas com grupos políticos variados, desde candidaturas legislativas, passando por sindicatos, coletivos, ativistas de campos de combate ao racismo, feministas, LGBTQIA+ e evangélicos progressistas. Fora minha participação em dois grupos de análise de conjuntura política nacional. Seria um apelo cringe[4] (vergonha alheia), com ares de clichê batido, roupa gasta, dizer que temos que incluir o amor na cesta básica? Sim ou não?
O clichê de incluir o amor na cesta básica como uma estratégia política pode parecer conversa mole. Por isso, vale a pena definir que tipo de amor é esse que vai entrar para compor as necessidades essenciais da população brasileira.
Dentre as minhas leituras, Orunmilá e Sobonfu Somé contribuem decisivamente para compreender o amor de modo encarnado. O amor não é apenas um sentimento, tampouco estou a dizer que pode ser incondicional e podemos amar ao próximo como nos amamos. Primeiro, porque não estou certo de que nos amamos de modo consistente, por outro lado, se a definição de amor passa pela nossa capacidade de investir uma das medidas mais preciosas da vida, o tempo, num relacionamento.
Não faz sentido, darmos o mesmo tempo, gastando a mesma energia com todas as coisas e relações da mesma maneira.
A minha defesa é bem simples: se o amor é o afeto catalisador de bem-estar – definição que não canso de repetir. O amor é, também, sentimento, ferramenta política, traquejo social e uma prática que está fincada em condições e acordos.
Mas, como incluir o amor na cesta? Amor é imaterial não se pode colocar numa bolsa como feijão ou arroz. No caso do vale-cultura, uma quantia é dada para que a pessoa possa ir ao teatro, cinema, comprar livros ou outras atividades culturais. No caso do amor, como fazer?
Tudo indica que existem diversas maneiras de inserir o amor na cesta básica, diversas tradições culturais, abordagens e perspectivas terapêuticas podem contribuir para nos ajudar a amar. Partindo da tese de bell hooks que diz que o amor é revolucionário.
A inclusão da arte de amar no hall de coisas essenciais pode transformar a sociedade. Como já foi dito, não se trata de um amor hipotético, universal e baseado em fantasias narcísicas patológicas.
Aqui, a sugestão é de que o amor na cesta básica possa ser incorporado através da prática do Kemetic Yoga ou Yoga kemética. Nesta tradição, duas personagens míticas Ausar e Auset ajudam a compreender o amor como uma prática de restauração vital. Portanto, trata-se de mapear que práticas e abordagens, tais como Hatha Yoga, Meditação, Mindfulness e as mais diversas terapias corporais podem contribuir para que amar seja um exercício encarnado.
Portanto, a gosto do freguês, precisamos escolher algum tipo de atividade que amplie nossa consciência corporal que nos forme também politicamente, porque sem a conexão devida entre corpo e mente, desconhecendo os nossos afetos mais agudos e os que são crônicos na nossa vida, o amor pode ser mera fantasia de uma criança que cresceu e, portanto, não cabe mais no nosso corpo. Daí,incluir amor na cesta básica não é exatamente prescrever Yoga kemética para todo mundo. Mas, uma expressão (possível) para um programa social, ou ainda, uma política pública que estimule toda a população a realizar atividades como Yoga, Meditação e práticas do mesmo gênero para que encontrem as suas melhores formas de se amar e de amar.
O amor na cesta básica se trata de uma provocação para que as pessoas possam se conectar mais consigo mesmas. Porque, partindo do Livro do vir à luz do dia e dos estudos de geopsicologia de Orunmilá, a falta de auto intimidade compromete a qualidade do amor que compartilhamos e também a nossa recepção do amor das outras pessoas.
Renato Noguera
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[1]Doutor em Filosofia, Professor da UFRRJ, ensaísta, roteirista e dramaturgo.
[2]Decreto-Lei Nº 399, de 30 de abril de 1938 em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-399-30-abril-1938-348733-publicacaooriginal-1-pe.html
[3]http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2003-11-29/gil-quer-colocar-cultura-na-cesta-basica-brasileira#:~:text=%22%C3%89%20preciso%20colocar%20a%20cultura,b%C3%A1sica%20brasileira%22%2C%20justificou%20Gil.&text=%22A%20realiza%C3%A7%C3%A3o%20do%20sonho%20coletivo,Nacional%20de%20Cultura%20do%20PT.
[4] A palavra inglesa que significa vergonhosa ou vergonhoso passou a ser usada por pessoas da geração Z (nascidos entre 1995 e 2010) para apontar o que classificam como mau gosto das gerações X (1960 a 1979), Millenium (também chamada de Y, nascidos de 1980 a 1994.