O estigma e a discriminação de travestis no Sistema Único de Saúde

Ministério da Saúde

Ministério da Saúde

“Ver “homens” que são altos, tem um vozeirão, cabelão, roupas, peito e bunda, isso choca!”

“[...] uma pessoa que se comporta, se veste, usa maquiagens, mas ele [ela] se comporta de um jeito diferente do seu órgão biológico e ele [ela] procura adotar roupas, uma vestimenta diferente do biológico dele [dela]. Maneira de falar, de se comportar, lógico que a roupa é o que mais deixa evidente uma pessoa que se diz travesti, mas a forma como ela caminha, a forma como ela fala, a forma como te aborda é diferente.”

“[...] geralmente com as roupas, uma produção feminina muito exagerada, muita maquiagem, muito brilho, muita roupa.”

“Por isso que pensei logo em diferente também. Então acho que entra muito em conflito, porque o que é diferente [...] foge dos padrões não é aceito por muitas pessoas. A equipe falava muito dos traços diferentes, [...] falavam ‘oh, parece uma mulher, o cabelo, como se veste’. Chamou muita atenção da equipe [...]”


Essas colocações foram retiradas do artigo “Corpo de homem com tre(jeitos) de mulher: a imagem da travesti por enfermeiras” que teve por objetivo avaliar qual a percepção dos enfermeiros sobre as travestis. Podemos observar que a imagem da travesti pelos profissionais de saúde pode estar atrelada a uma visão híbrida entre características físicas de homem e mulher, o que não difere da visão que comumente a população tem deste grupo de pessoas. Este é o primeiro ponto a ser abordado nesta coluna, antes mesmo de relatarmos todos os problemas enfrentados para o alcance da universalidade dentro do Sistema Único de Saúde – SUS.

Peço licença para citar um pouco sobre o que li do tema, para que entendamos com um pouco mais de profundidade quais os entraves enfrentados pelas travestis, principalmente em termos de exclusão social.

Oliveira et al (2019) explica:

Independente da orientação sexual, homens e mulheres buscam uma sintonia entre a autoimagem e a materialidade do próprio corpo. Considerando a expressão e identidade de gênero pautada na feminilidade, as pessoas que se autorreferem como travesti podem adotar práticas de modificação corporal no sentido de melhor adequarem seus corpos ao modo a que sentem pertencer. Neste sentido, a invenção do corpo se configura como uma busca permanente, uma vez que precisa ser feita e refeita com a finalidade de alcançar a feminilidade, sem, contudo, tornar-se uma mulher. Objetiva-se a construção de uma imagem feminina singular, própria, visando produzir o significado daquilo que é visto como belo para si”.

É a partir desta incompreensão conceitual do “ser travestir” por parte da população, e nesta estão incluídos parte dos profissionais de saúde, que o preconceito inicia. A busca de uma feminilidade singular expressada pelo desenvolvimento de características físicas peculiares, representa a vulnerabilidade das travestis frente as normas baseadas em crenças estigmatizadas que regulam o que é ou não “normal”. Neste sentido, fugindo então do que é tido como “normal”, podemos refletir um pouco sobre a invisibilidade social das travestis no contexto das nossas vidas. Faço então uma pergunta: quantas vezes você foi atendido por uma travesti em um restaurante, em uma loja ou em um consultório médico? As travestis, ainda hoje, são excluídas socialmente do cotidiano das cidades, tendo aparições mais frequentes no período noturno, quando muitas vezes são desejadas e remuneradas. Estimativa feita pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) aponta que 90% das pessoas trans recorrem a prostituição em algum momento da vida. Não é necessário escutar a música “Geni” do Chico Buarque para entender a minha provocação, mas simplesmente buscar na memória qual a nossa interface/convívio com esta população.

Considerando o exposto, é fundamental que se entenda que, devido ao preconceito existente que acarreta na marginalização deste grupo, as travestis estão mais suscetíveis às violências (física e psicológica); às doenças sexualmente transmissíveis, dentre elas a infecção pelo HIV e/ou desenvolvimento da AIDS – dado da Organização Mundial de Saúde (OMS) demonstra que travestis e trans tem até 49 vezes mais chance de adquirir o vírus do HIV ao longo da vida quando comparado ao restante da população; e ao desencadeamento de doenças no âmbito de saúde mental, como a ansiedade, síndrome do pânico, depressão e o desejo de suicídio.  

Um outro ponto fundamental em termos de saúde, e esse mais específico desta população, é referente ao uso de produtos químicos, principalmente o silicone líquido, que é capaz de constituir formas femininas mais rápido do que os hormônios. O uso desta substância no Brasil, mesmo sendo desaconselhável, ocorre com frequência em travestis e transexuais, principalmente em partes do corpo como rosto, quadril e nádegas. Em casos graves pode provocar necrose, septicemia e morte. A alta frequência e especificidade da ocorrência desses desfechos na população de travestis e transexuais associado a movimentos militantes organizados levou a discussões tímidas no âmbito do SUS. Entretanto ainda hoje, as travestis recorrem por serviços particulares, pois ainda é muito difícil encontrar na rede pública profissionais de saúde que atendam às demandas do silicone industrial. E é esse o meu gancho para falar sobre o segundo ponto desta coluna: a universalidade no âmbito do SUS.

A universalidade é um principio doutrinário do SUS que garante o acesso à saúde de todo e qualquer cidadão, independente de sexo, raça, ocupação ou outras características sociais ou pessoais. É um princípio que, junto com a equidade - já trabalhado em artigos anteriores - vem para garantir o atendimento personalizado e individuado. No espaço de atuação dos profissionais de saúde é necessário a garantia de um atendimento de excelência, entretanto sem perder a ética, a empatia e a solidariedade. As travestis, assim como qualquer paciente que necessite de atendimento, trazem uma bagagem de experiências e vivências que requer formas de cuidado particularizadas. É nesse ponto que precisamos então trabalhar, de maneira mais árdua na formação dos profissionais de saúde, para fortalecer a humanização dos atendimentos/tratamentos a serem oferecidos pelo SUS.

Objetivando o alcance deste atendimento mais humanizado, em maio de 2015 foi lançado o curso a distância intitulado “Política de Saúde LGBT”, que provoca reflexão e estimula a realização do exercício de respeito e cidadania da população LGBT. O curso é ofertado pela Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS, 2015). Acesse o Acervo de Recursos Educacionais em Saúde aqui.

Porém sabe-se que mesmo com o esforço para a melhora no atendimento, a mudança do comportamento discriminatório para com as travestis, infelizmente, é um processo lento, o que dificulta a adesão deste grupo aos serviços de saúde. Receosas de sofrerem preconceito, estas evitam sempre que podem o uso desses serviços. Essa afirmativa é confirmada por uma pesquisa realizada pelo Hospital das Clínicas da USP, São Paulo, e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em que 43,2% dos entrevistados disseram evitar os serviços de saúde pelo simples fato de serem trans e 58,7% relatou ter sido vítima de preconceito durante o atendimento.

Neste sentido faz-se necessária também a discussão sobre a reorganização da rede de assistência para a garantia do principio da universalidade. Até que esta reorganização ocorra, alguns estados criaram ambulatórios especializados e exclusivos para atender às demandas específicas de travestis e transexuais (femininas e masculinos). O primeiro foi criado em 2009, no estado de São Paulo.

O serviço é formado por equipe multiprofissional (médicos, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros e fonoaudiólogos) e oferece os seguintes serviços: acolhimento; aconselhamento (adoção de medidas de autocuidado, redução de danos em relação à hormonioterapia, uso de silicone); avaliação proctológica, urológica, ginecológica, endocrinológica, de clínica geral e em saúde mental; psicoterapia individual e em grupo; e atendimento social.”

(Gianna, 2011 apud Ferreira, 2017).

Existem atualmente no Brasil onze ambulatórios especializados funcionando nos moldes do criado em São Paulo/SP, sendo apenas um localizado no Norte, no estado do Pará, e um no Nordeste, em João Pessoa/PB, considerado referência nacional. O pequeno número de ambulatórios demonstra a necessidade de capilarização do serviço de atendimento especializado para, minimamente, todas as capitais do país.

SUS

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Apesar da garantia de saúde ser prevista na nossa Constituição Federal, a Lei Orgânica da Saúde 8080, que regulamenta os princípios do SUS, é de 1990, demonstrando que o SUS é um sistema relativamente novo. O fato de ser recente pode inicialmente justificar a necessidade de ajustes/adaptações ao longo dos anos, até que este sistema esteja realmente implantado e em pleno funcionamento no país. Entretanto não podemos esperar ad infinitum para que sejam cumpridos os princípios básicos que regem o sistema: Universalidade, Equidade e Integralidade, o que deixa claro a necessidade de empatia e militância pelas populações que se encontram em situações de maior vulnerabilidade.

Termino compartilhando que, recentemente, em 2018, a OMS anunciou a retirada dos transtornos de identidade de gênero do capítulo de doenças mentais. Isso ocorre 28 anos depois da retirada do termo homossexualidade da lista de doenças, que ocorreu em 1990. Este também é considerado um passo importante para a redução do estigma e discriminação desta população e para garantia de acesso à saúde.

Um abraço a todos.

Rafaella Albuquerque e Silva

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Referências

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. – Brasília : Ministério da Saúde, 2015. 194p. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/transexualidade_travestilidade_saude.pdf

Ferreira BO, Nacimento EF, Pedrosa, JIS, Monte LMI. Vivências de travestis no acesso ao SUS. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 27 [ 4 ]: 1023-1038, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312017000400009

Gianna, M.C. CRT DST/Aids-SP implanta primeiro ambulatório para travestis e transexuais do país. BIS, Bol. Inst. Saúde (Impr.). São Paulo, v. 13, n. 2, p. 182-189, 2011. Disponível em: <http://periodicos.ses.sp.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518- 18122011000200013&lng=pt&nrm=iso>

Oliveira EM, Oliveira JF, Porcino CA, Campos LCM, Reale MJOU, Souza MRR. “Corpo de homem com (tre)jeitos de mulher?”: imagem da travesti por enfermeiras. Interface (Botucatu). 2019; 23: e170562 https://doi.org/10.1590/Interface.170562  - http://www.scielo.br/pdf/icse/v23/1807-5762-icse-23-e170562.pdf

https://unaids.org.br/2018/06/oms-anuncia-retirada-dos-transtornos-de-identidade-de-genero-de-lista-de-saude-mental/