O sonho efêmero da democracia em vertigem
O recente lançamento do documentário “Democracia em Vertigem” na Netflix despertou - ou relembrou - em muitos de seus expectadores os sentimentos de frustração, tristeza e melancolia vividos durante todo o processo de derrubada do governo de Dilma Rousseff. Certamente o documentário é competente na transmissão dessas emoções, sobretudo por se tratar de uma narrativa pessoal e feita por quem acompanhou o desenrolar dos fatos com certa proximidade.
Para além das narrativas que emergem com o impeachment de 2016, a história brasileira, desde sua colonização e a formação de seu pensamento político, nos conduz a percepção de que “a democracia no Brasil, foi sempre um lamentável mal-entendido”, como escreveu Sérgio Buarque de Holanda, numa de suas frases mais célebres. Por isso, é preciso nos apreendermos de nossa história, para que seja possível compreender melhor os reflexos que nos afetam ainda hoje.
A colonização portuguesa no Brasil trouxe consigo, como não poderia deixar de ser, elementos particulares do povo lusitano que marcaram, de forma acentuada, o caráter da vida política e social que começou a se estabelecer no país que emergia. Essa colonização, porém, pretendia tão somente utilizar dessa nova terra como fonte de exploração de seus recursos naturais em benefício da metrópole. Nesse período, não se pretendia a criação de uma pátria brasileira.
A exploração era integralmente de natureza agrária, e as cidades constituíam mero apêndice do campo. A escravidão do negro africano passou a ser o principal sustentáculo desse estado de coisas, não só em função do uso da mão de obra escravizada, mas em razão do capital que circulava fruto desse tráfico. A vida, era limitada apenas a fazenda. Patriarcalismo e patrimonialismo são os elementos chave dessa organização social, na forma como importados de Portugal.
Essa configuração nacional, do ponto de vista social e econômico, foi apenas modificada mais de dois séculos depois, com a vinda da família real portuguesa e a transferência da capital da metrópole para cá, e posteriormente com a abolição da escravatura. Todavia certos aspectos, como não poderia deixar de ser, permaneceram.
Antes disso, a falta de ter se estabelecido aqui mecanismos culturais próprios, como universidades e imprensa, motivou que os filhos dos colonos enriquecidos fossem enviados para estudar na Europa, onde foram contaminados com as ideias então dominantes, principalmente as de índole liberal, que pretendiam importar para o Brasil. Estes, que formaram a nova elite intelectual “Estavam determinados a não ser apenas os libertadores de uma colônia, mas principalmente os edificadores de um Estado e de uma Nação.”
As ideias liberais vindas da Europa – de organização do Estado e da sociedade - não foram aplicadas no Brasil na forma como pensadas originalmente, mas o seu processo de introdução não deixou de sofrer a influência da origem privilegiada dessa nova elite intelectual, bem como das características próprias que se desenvolveram aqui e não estavam na base do pensamento importado. Assim, o que se chamava de liberal, era tingido de todas as cores do tradicionalismo e conservadorismo.
Essa geração de pensadores do século final do século XIX, que era em especial, sustentada pelo Estado, pois muitos dos intelectuais da época passaram a desempenhar o serviço público, não encontrava mais espaço na monarquia para a aplicação de suas ideias e assim começam a aparecer os primeiros manifestos republicanos no Brasil. Nesse período, a Guerra do Paraguai, que motivou a criação de uma força militar brasileira, com formação também a partir do Estado (e não a partir do povo, com em outros lugares do mundo), também contribuiu para a crise da Monarquia, uma vez que motivou o descontentamento do médio oficialato com o regime instituído, pois estes não eram próximos da nobreza, tampouco recebiam as louvações pelos feitos militares.
O cientificismo que se pronunciava na Europa (que está presente no darwinismo, socialismo e outras concepções emergentes no período), foi importado para o Brasil através do positivismo de Augusto Comte, e passa a ser popular entre a intelectualidade, assim como dentro da caserna descontente. Para os positivistas, era necessário construir na população, por meio da educação, a moral e a cidadania. No exército, surge a ideia do soldado cidadão, que seria o responsável e exemplo desse processo. Já ouviram falar de “ordem e progresso”?
Assim, a república não surge de um movimento ascendente, mas de um golpe militar e de uma elite intelectual que buscava ocupar o estado, de sorte que ficam rarefeitas as ideias democráticas, pois o que motivava a criação da república não eram ideais de representação verdadeira. É o positivismo duro e autoritário que comanda esse processo, no qual a lei transformaria a sociedade. É a partir do próprio Estado que se modificaria a ordem estabelecida. Imperam as ideias salvacionistas, ante a compreensão de que a sociedade não poderia se desenvolver autonomamente.
“E assim preferiram esquecer a realidade, feia e desconcertante, para se refugiarem no mundo ideal de onde lhes acenavam os doutrinadores do tempo. Criaram asas para não ver o espetáculo detestável que o país lhes oferecia.”
Escreve Sérgio Buarque sobre a elite intelectual desse período.
Essa concepção autoritária e de dirigismo da sociedade a partir do Estado, moldado por ideias importadas, predomina no Brasil ao longo de sua história. Na primeira República, por exemplo, o liberalismo de Ruy Barbosa é tímido e fruto de cópias; ainda que pensando uma república, inexistia uma teoria de representação robusta. Se convencionou que o voto deveria ser apenas aos letrados, o que demonstra a noção de que o Estado criaria o eleitor através da educação.
São ideias semelhantes que irão perdurar por todo o ideário nacional e influenciar de maneira contundente os períodos posteriores. Concepções autoritárias que prevalecem, ainda quando possuem inspiração liberal, para o desenvolvimento do Estado e da sociedade brasileira, das quais o país ainda não se libertou.
Assim, quando a ditadura militar instituiu a disciplina de “moral e cívica” ou se repete o chavão de que o “brasileiro não sabe votar”, o que está no fundo dessas posturas é essa concepção autoritária de sociedade, que deve ser construída de cima para baixo e que domina a história brasileira. Para elas, o povo não tem condições de se autodeterminar, mas é preciso ser educado e civilizado. Educado não para a sua emancipação, mas tão somente para seguir os anseios de uma elite dirigente e que controla o Estado. Nada democrático, portanto.
Parece que no Brasil a democracia sempre esteve mais para o sonho efêmero a que Petra Costa alude em seu documentário, ao contrário de ter sido algo que tivéssemos nos apropriado algum dia. Ainda que do ponto de vista mais instrumental ela possa estar presente, por meio do direito ao voto e da lisura do processo eleitoral – mesmo que seus limites enfrentem pressões constantes – certamente no caráter mais substancial não se apresenta para além da superfície. A escravidão nunca foi superada; as policias reprimem e matam indefinidamente; famílias se perpetuam no exercício do poder. E o que grande parte da população espera, é que uma solução autoritária nos salve da nossa miséria.
Arthur Spada
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