Para depois do carnaval
Na semana da mulher no Blog*G Renato Farias convida Vera Gertel, jornalista e atriz que fez parte de um dos momentos mais importantes do teatro brasileiro.
Nesse último carnaval me senti fantasiada de "fora de cena". Vi uma alegria falsa nos blocos e uma Broadway exagerada na Sapucaí. Não consegui me esquecer das últimas eleições e ficava me perguntando em quem será que aqueles foliões votaram. Aqui faço um parênteses: adoro uma batucada, as fantasias irreverentes, o carnaval da Mangueira que este ano arrombou.
Num país tão desigual quanto o nosso, em que basta sair à rua para ver miséria, mendigos, camelôs escondidos atrás de árvores por não serem licenciados, moças nos supermercados trabalhando de mau humor porque ganham pouco, meninos nos sinais vendendo balas ou fazendo acrobacias para comer, não posso me sentir a vontade. A miséria toma conta da alma e me sinto tão miserável quando eles. De que vale cobrar justiça para Marielle se a própria Justiça não se manifesta? Protestar contra Brumadinho? Já não houve Mariana? Qual será a próxima desgraça? Tenho sempre de estar preparada para o que der e vier? É para isso que existimos?
A Cultura se ferra cada vez mais. E com tanto talentos que temos! Fui atriz lá pelos idos de 1960. Meu teatro era aquele – quase sempre - que falava de nossas mazelas sociais. Como não podia deixar de ser, de um ponto de vista de nossa juventude idealista, honesto nas intenções, talvez superado nas diretrizes. Numa peça chamada “Eles não usam black-tie”, do saudoso Gianfrancesco Guarnieri, uma família de operários, vivendo numa favela, tem um filho que resolve furar uma greve, cujo líder é seu pai. Ele alega que a namorada está grávida e precisa casar, não pode perder o emprego. O pai não o perdoa, todos o recriminam, a namorada o abandona. Termina com a expulsão do fura-greve do morro.
Fizemos esse espetáculo em inúmeros recantos desse Brasil afora. Chegou o dia de apresentá-lo no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo - dos mais fortes do país. Distribuímos um questionário para saber o que pensava aquele público sobre o texto. Uma das perguntas era: "Acha certo o filho ser expulso do morro por furar a greve?" Maioria das respostas: "Não. Nós teríamos feito uma vaquinha para ajudá-lo a casar e assim ganhá-lo para o nosso lado". Cheguei a me perguntar: Mas aí não acabaria o conflito da peça? Sim. Mas hoje me pergunto: E a solidariedade? Esquecemos dela.
Hoje vejo um governo que prega o ódio. Damares pinta com o azul e rosa, o Chanceler Ernesto quer uma guerra a qualquer custo, o Ministro do Meio Ambiente prefere que os índios, nossos primeiros habitantes, se danem, e o da Educação manda cantar o hino acima de tudo. Hino mentiroso e na ordem indireta: "Ouviram do Ipiranga às margens plácidas, de um povo heróico o brado retumbante". Que povo? Não havia nenhum às margens do (riacho) Ipiranga.
Deitado eternamente em berço esplêndido, o Presidente faz e desfaz de pronunciamentos sem fundamentos como se não soubesse o lugar que ocupa. Ah, sim, prega armas para todos, indiscriminadamente. E distribui vídeos pornográficos, enquanto manda arrancar de livros didáticos as páginas de prevenção e educação sexual.
Preferi ir assistir à peça “Para não morrer”. O título combinava com meu baixo astral. E encontrei um grito de otimismo na luta das heroínas do nosso maltratado continente latino-americano. Batalhadoras do povo contra a opressão e a exploração, às vezes massacradas outras tantas vencedoras. E elas me alertaram: LUTE! Se não quiser morrer.
P.S. O espetáculo “Para não morrer”, com Nena Inoue, tem texto dramático inspirado no livro “Mulheres”, de Eduardo Galeano
Vera Gertel
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