Para que serve o amor?

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De acordo com estudos de Carl Jung[1] e Clyde Ford[2], mitos são narrativas que apresentam o que há de mais profundo e essencial da condição humana. No vasto panteão de aventuras das divindades do Kemet, encontramos várias tramas sobre o amor, dentre as quais, destaco uma que considero especialmente emblemática.

Trata-se da história de Ausar, Auset e Set.

Nos primórdios do início do mundo, Ausar, o primeiro faraó dos tempos imemoriais, estava casado com Auset. A sua glória estava espalhada pelo mundo e Set, irmão de Ausar, passou a sentir ciúmes e, tomado pelo desejo de tornar-se faraó, arquitetou um plano para destronar o irmão.

Set atraiu o irmão para um banquete e lhe pediu que experimentasse um sarcófago. De bom grado, Ausar deitou e foi aprisionado e lançado no Rio Nilo. Na ausência de Ausar, Set assumiu o trono e levou sua esposa Nebt Het para governar o Kemet ao seu lado.

Com o desaparecimento do marido, Auset desesperada começou uma busca implacável. Ela o achou dentro de uma tamarindeira num reino próximo, usando seus poderes, transformou-se numa pequena ave e reanimou o coração do marido tocando-lhe o peito com suas patas e batendo as asas de andorinha. Logo em seguida, o casal concebeu um filho, Heru.

Depois do encontro, Auset escondeu o sarcófago com seu amado dentro numa região discreta, mas Set o encontrou. Então, o deus do caos, teve seu ciúme e inveja acrescidos de mais ódio, usando toda sua força para  partir o irmão em quatorze pedaços e espalhá-los por todo o país.

Diante de notícias do que Set tinha feito, Auset, a deusa do amor, passou a procurar incansavelmente pedaço por pedaço de seu esposo, Ausar, após uma jornada intensa de buscas, os encontrou e, usando os seus poderes, juntou todas as partes, enfaixando-as com tecido branco, costurou o corpo desmembrado e o embalsamou.

A ressurreição de Ausar se deu com uma mudança, de negro passou a ter a pele toda esverdeada até tornar-se do tom da seiva vegetal. Então, Ausar foi reinar em outro mundo e apoiou sua esposa Auset para que Heru, o filho do casal, se tornasse faraó no lugar de Set.

Pois bem, essa emblemática narrativa mítica sobre o sentido do amor sucintamente apresentada nos dá muitas pistas. Primeiro, podemos tomar cada divindade como um aspecto da condição humana.

Para o que nos interessa, podemos compreender que Ausar, Set e Auset são expressões de sentimentos e formas de agir das pessoas.

Set, deus do caos, da guerra e que se faz reconhecer também através das tempestades, raios e trovões, nos remete à sede pelo poder. De acordo com Carl  Gustav Jung, o poder é o inverso do amor, onde um está o outro fica ausente.

Nos estudos de geopsicologia, a busca por controle e domínio impede que os nutrientes afetivos alimentem o amor. Set representa o nosso desejo por controle e domínio, mesmo que isso custe o nosso bem-estar. Ausar representa a nossa natureza. Auset representa, ao mesmo tempo, o amor e a arte de amar.

Nesta trama, as ações de cada divindade ajudam a lançar luzes sobre um dilema fundamental, a felicidade está no poder ou no amor?

Set é alguém que se torna cego pelo poder, uma pessoa que faz o que for preciso para conquistar o sucesso que acredita merecer. Por isso, foi capaz de matar, enterrar e dilacerar Ausar, deus do outro mundo[3], em quatorze pedaços ato que significa que a ânsia pelo poder, a busca por conquistá-lo e mantê-lo implica numa dilaceração afetiva.

Se alguém busca somente o poder, somente controlar e ter sucesso  independentemente de conhecer o seu coração, esta pessoa estará dilacerada, divorciada de si. Set simboliza cada um de nós, buscando o poder desencontramos o amor e  despedaçamos a nossa intimidade conosco – representada por Ausar.

Auset, a deusa do amor, tem o poder de costurar o que foi partido, ela é uma restauradora.

Auset é a nossa capacidade de amar. Depois que ela restitui a Ausar o dom da vida, ele fica esverdeado – aqui uma menção à cor da natureza. Ausar está investido de amor, por isso assume a sua própria natureza. O sentido do amor é restaurar a vida e nos conectar com o que existe de mais íntimo e profundo em cada um de nós.

Pois bem, o que o mito está a nos dizer? Ausar restaurado indica que o poder está em oposição do amor, numa disputa em que escolhemos o poder, nossa sede por dominar e controlar – simbolizada por Set, dilacera o nosso “eu” (Ausar).

Daí, quando temos contato com o sentimento do amor – Auset, nos abrimos para amar e nos compreendemos como pessoas dignas de receber os cuidados do amor, nós reestabelecemos o nosso encontro conosco e passamos habitar num mundo mais profundo em que a conexão com nossos sentimentos mais verdadeiros e profundos é mais importante do que exercer um papel de poder.

A pergunta que intitula este artigo tem resposta? Pois bem, considerando algumas reflexões de Orunmilá, do mitólogo Clyde Ford em O herói de rosto africano e elaborações de Carl Jung, existe uma confusão existencial. Muitas pessoas acabam creditando ao poder o “dom da felicidade”.

Mas, por incrível que pareça é o amor que pode fazer uma pessoa feliz. Daí, diante da interrogação:

“Para que serve o amor?”, uma formulação possível, amor é restaurador de algo muito íntimo que perdemos quando nos confundimos com a vontade de poder. Amar serve para que possamos reestabelecer a busca de Ausar.

A divindade dos mortos tem como princípio viver de acordo com o coração. É importante dizer que na filosofia kemética, o coração é a sede dos pensamentos, emoções e do caráter. Deste modo, o amor é o modo de reestabelecer uma união entre nossos pensamentos, emoções e o nosso caráter. Amar serve para que possamos manter sintonia com nós mesmos.

Renato Noguera

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[1] Doutor em Filosofia, Professor da UFRRJ, ensaísta, roteirista e dramaturgo. 

[1] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução Maria Luíza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva.Perrópolis, RJ : Vozes, 2000.  

[2] FORD, Clyde. O herói com rosto africano: mitos da África. Tradução Carlos Mendes Rosa. São Paulo: Summus, 1999.

[3] Ausar é conhecido também como deus dos mortos, o seu papel consiste em julgar as pessoas depois que morrem, pesando o coração de cada uma numa balança onde a pena de Maat (deusa da verdade) fica no prato que dá a justa medida que não pode ser ultrapassada.