Parasita e a questão da desigualdade habitacional

*Imagem: Cartaz francês do filme que ressalta a diferença das casas.

*Imagem: Cartaz francês do filme que ressalta a diferença das casas.

No último domingo o filme Parasita entrou para a história: foi o primeiro filme de língua não inglesa a ganhar o prêmio principal do Oscar, o de melhor filme. O filme sul-coreano é fruto direto das políticas de incentivo daquele país as artes visuais e traz uma temática de forte apelo social. A desigualdade social, de oportunidades e do acesso a espaços privilegiados, perpassa toda a narrativa do filme, que flerta com diversos gêneros narrativos. A demonstração da desigualdade a partir das formas de habitação é nítida no filme.

A família protagonista do filme reside num apartamento subterrâneo que é conhecido na Coreia do Sul como banjiha. Tais espaços, são frutos de uma exigência governamental de 1968, que determinou a construção de abrigos de proteção em edifícios de até quatro andares, num momento de acirramento dos conflitos entre as Coreias do sul e do norte, durante a guerra fria. A partir dos anos 80, a locação desses imóveis passou a ser legalizada, em razão da falta de espaço para habitação em Seul, se tornando uma opção de moradia para pessoas de baixa renda. 

De outro lado, o filme mostra uma família privilegiada e que reside em uma portentosa mansão, cenário de grande parte da dinâmica do filme, a qual teria sido projetada por um arquiteto de renome, antigo proprietário da residência. A casa, possui amplos espaços, decorados de maneira sóbria e minimalista. Ela possui, ainda, uma enorme janela com vista do quintal, que permite a entrada de muita luz solar, o que é negado à outra família do filme, em seu apartamento abaixo do nível da rua. 

O diretor do filme Bong Joon-ho, disse em diversas entrevistas que o filme trataria, a princípio, de uma realidade sul-coreana, mas que ao longo das exibições percebeu que a película mostrava uma realidade universal. No Brasil, que é um dos países com a maior desigualdade social do mundo, o apelo do filme é evidente, uma vez que os problemas nele retratados são conhecidos a anos por aqui, especialmente quanto a disparidade entre as moradias e suas localizações.

As cidades brasileiras são notadamente marcadas pela segregação, que ilustra a desigualdade social do país e a revela através da desigualdade geográfica - via de regra, a pobreza se concentra num local e a riqueza em outro. As disparidades de raça e gênero também aparecem como marcas desse processo, que repousa na escravidão e na sua não superação. 

A segregação não marca apenas o início do processo de urbanização das cidades brasileiras, mas é sua lógica constante, que a cada novo ciclo de expansão, expulsa os pobres para cada vez mais longe, excedendo os limites dos municípios e gerando as regiões metropolitanas completamente conturbadas. Essa lógica também estava presente no boom imobiliário que ocorreu no Brasil entre 2007 e 2014. 

Ao contrário do que se diz, o processo de urbanização das cidades brasileiras não se dá de modo completamente caótico, mas há uma lógica econômica subjacente, que não pode ser naturalizada e deve ser trazida à tona. O caos, em verdade, decorre de uma ausência de intervenção e mais, de conivência do Estado com esse modelo, que beneficia apenas os interesses econômicos. 

De maneira resumida, no início da urbanização na cidade pré industrial, trabalho e moradia conviviam no mesmo espaço; havia as vilas operárias e a forma de deslocamento, os bondes, não permitia que fossem cobertas grandes distâncias. Com a industrialização e a descentralização destas, essa lógica muda e o trabalho passa a ocupar ambientes distintos da moradia. Soma-se a isso, o advento do ônibus e a abertura de rodovias, de modo que o deslocamento passa a ser feito por distâncias maiores e a mancha urbana cresce.

A partir daí, tem início o modelo de periferização, no qual os trabalhadores são obrigados a morar em lugares cada vez mais distantes. Nos anos 40, em São Paulo, acontece uma inflação dos aluguéis e a demolição de cortiços localizados no centro da cidade, o que expulsa dessa região a parcela trabalhadora e pobre da capital. Essa periferização, todavia, não se inicia nos terrenos imediatamente mais próximos dos centros, mas em espaços ainda mais distantes e, aqueles intermediários, são deixados desabitados propositadamente para ocupação futura. São os chamados  vazios urbanos, que estão no cerne da especulação imobiliária. 

Isso porque, se a rodovia e os demais serviços públicos precisam chegar a nessas novas periferias mais distantes, necessariamente precisam passar por essas áreas do vazio urbano, que passam a ser equipadas com toda a infra estrutura social, tornando esses espaços mais valorizados e mais caros para agora serem finalmente vendidos e habitados. Assim, grandes proprietários de terra lucram duas vezes: com a venda dos terrenos periféricos e ainda mais com a venda dos imóveis nessas áreas intermediárias, mais próximas do centro e equipadas infraestruturalmente. E o poder público brasileiro é conivente com esse processo que, como dito, não ocorre de modo natural, mas privilegia uma perversa lógica econômica. 

O efeito dessa lógica de segregação tem três grandes efeitos. O primeiro, é a piora na qualidade de vida do trabalhador, que precisa se deslocar muito mais para chegar no trabalho. Em segundo, há uma tendência de piora dos serviços públicos, já que estes são instalados preferencialmente nas áreas centrais e intermediárias e não nas periferias cada vez mais distantes e, por fim, há o maior endividamento das famílias com os custos de aluguel, vez que para morar num lugar razoável, precisam comprometer cada vez mais seu orçamento, cujo preço é fruto da especulação. Quem é o parasita por aqui?

No Brasil, a falta de qualquer política habitacional capaz de dar conta dos problemas gerados por esse processo, faz com que a moradia não seja vista como um verdadeiro direito, mas apenas como um privilégio a ser conquistado, de modo que o problema do déficit habitacional não é enfrentado de maneira contundente por políticas públicas, mas apenas visto como uma decorrência natural do capitalismo. 

Se em Parasita a família mora em um apartamento subterrâneo, por aqui as favelas e os bairros mais periféricos e carentes de serviços públicos são as grandes ilustrações desse problema. Aliás, nenhum e nem outro estão a salvo da destruição em razão das enchentes. 

Ao escancarar essas questões para o mundo, Parasita contribui para um amplo debate acerca dos efeitos perversos do capitalismo e da desigualdade a ele inerente, que quando deixado à própria sorte e sem qualquer tipo de regulação pública, gera efeitos nefastos na vida das pessoas, que são vistas apenas como dados numéricos. E pior, estas serão culpadas por terem cheiro ruim ou por não conseguirem chegar no trabalho depois da chuva.


Arthur Spada

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