Por que meninos não podem brincar de boneca?

Imagem - Pinterest

Imagem - Pinterest

Nas redes sociais e na imprensa oficial, os casos de feminicídio parecem ter se multiplicado. Fato.  Parte da opinião pública se posiciona politicamente contra as leis de proteção das mulheres. Fato. Não é raro lermos publicações nas redes sociais que dizem, “Lei Maria da Penha não adianta nada”.  Pois bem, quero contribuir com um debate qualificado, colocando à mesa cartas africanas e indígenas para entendermos melhor esse fenômeno. As culturas dagara e guarani têm algo em comum.

A filósofa dagara Sobonfu Somé e a antropóloga guarani Sandra Benites  concordam com a tese de que: “homens têm sangue quente e as mulheres, frio”. Antes de prosseguir, vale a pena situar rapidamente todas as pessoas que se debruçam sobre este artigo a respeito de dagaras e guaranis. O povo dagara habita parcialmente três países da África do oeste: Burquina Faso, Gana e Costa do Marfim. Trata-se de uma cultura milenar africana ocidental que define a vida como uma jornada existencial surpreendente, uma tradição filosófica que coloca em relevo os cuidados com os modos de se relacionar consigo e com as outras pessoas.  Os povos guaranis estão presente em regiões da Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai. Mbya; Pãi-Tavyterã (conhecidos no Brasil como Kaiowá); Avá Guarani (denominados no Brasil Nhandeva) compartilham a filosofia do “bem-viver”, a harmonia com o meio ambiente não deve ser negligenciada.

De volta ao aspecto em comum entre as duas filosofias: afirmar que os homens têm sangue quente significa que são mais propensos à violência e perigo em potencial para vida na comunidade. O sangue quente é instável e tornaria os homens propensos a responder angústias, dúvidas e desafios pelo uso da força bruta. O problema não é ter sangue quente; mas, não compreender que isso indica uma instabilidade que precisa ser trabalhada.

renato 2.jpg

O que explicaria porque jovens do sexo masculino envolvem-se mais em situações de violência. Daí, quando os meninos guaranis engrossam a voz serem levados para um ritual realizado num rio para que o sangue quente “esfrie”. Os rapazes dagaras também passam por um ritual, um encontro onde são chamados para uma experiência de choro junto com outros meninos e homens mais velhos. O que podemos concluir desses eventos das culturas guarani e dagara?

É interessante notar que as pesquisas sobre essas sociedades atestam que não existem casos de feminicídio. Nas culturas ocidentais misóginas, patriarcais e sexistas: nós homens somos muito mal educados. Educados na cultura do estupro, educados na cultura do chauvinismo, educados na cultura do nosso desejo masculino em primeiríssimo lugar, educados para sermos servidos pelas mulheres, educados para não sermos leais às mulheres, educados para sermos leais aos homens. Na cultura dagara: um homem só pode casar  com uma mulher se ele percorrer o caminho existencial feminino por algum tempo. Ele passa por um ritual em que se veste como as mulheres e realiza atividades frequentemente femininas. Na cultura guarani, os homens aprendem que as mulheres fazem política antes deles, não o contrário.

Enfim, não podemos debater o feminicídio sem atentar para uma cultura em que meninos são socializados como heróis e guerreiros. Na cultura guarani um menino cresce aprendendo que não pode se tornar um homem se for apenas guerreiro. Na cultura dagara um menino cresce aprendendo que precisa chorar para se tornar um homem. A cultura ocidental é uma receita líquida e certa para produção de masculinidades tóxicas, desde a dos homens que externalizam suas frustrações em atos de violências até aqueles que nunca demonstram um sentimento de insatisfação e vestem a fantasia de senhores da “grande fortaleza” – destruídos por dentro. Nessa cultura, homens que agridem mulheres não podem ser exceções. Portanto, o feminicídio é previsível.

Vale a ressalva. Não existem respostas prontas para questões sérias e profundas como essas. Mas, temos pistas como: socializar meninos brincando de bonecas pode ser um caminho. Brincar com bebês de plástico pode contribuir para produzir uma subjetividade do cuidado. Ao invés de uma espada e de um revólver, que tal mamadeira e berço de brinquedos? Afinal, um menino pode querer ser pai quando for adulto. Desse modo ele experimentará o cuidado como forma de relacionamento. Por isso, é importante que  meninos brinquem com bonecas negras (pretas e pardas), indígenas, amarelas e brancas, e, com bonecos negros (pretos e pardos), indígenas, amarelos e brancos.

Observação: o racismo não pode ser desconsiderado. E, não podemos deixar os meninos reféns de fantasias de super-heróis que travam infinitas batalhas em busca de uma vitória maiúscula e viril. Nada contra a virilidade, mais deixá-los restritos a essa ideia? Além de empobrecer o repertório vital, é perigo de morte para as mulheres. Os meninos guaranis e dagaras crescem alternando suas energias entre cuidar e combater. Não se trata de eliminar o combate como forma de vida; mas, a redução do repertório a esse domínio é uma das mais perigosas raízes da violência masculina. Por isso, convido quem lê a presentear os meninos com bonecos e bonecas, brincar com bebês de brinquedos é formativo.  Diante deste demorado raciocínio, vamos à pergunta:

“POR QUE MENINOS NÃO PODEM BRINCAR DE BONECA?”.

renato 3.jpg

Resposta: se eles brincarem, podem se tornas homens com “h” minúsculo – isto é, homens que assumem seus limites, dificuldades e buscam autoconhecimento. Portanto, meninos devem brincar de boneca, pelo próprio bem-estar, o das mulheres e de toda a sociedade. E, quanto a nós homens adultos? Precisamos reaprender a chorar; o choro guardado a muito se transformou em energia tóxica que mata mulheres.

Renato Noguera

Instagram @noguera_oficial

Siga no instagram @coletivo_indra