Professora e/ou faxineira?

Valéria Barcellos

Valéria Barcellos

SEMANA PROTAGONISMO NEGRO - 14 A 26 OUT

Lá por volta de 1985, ano em que ingressei na pré-escola, numa escola municipal do interior do Rio Grande do Sul, meu amor pela escrita e leitura já haviam sido atiçados. Minha falecida mãe era defensora ferrenha dos estudos. Dizia ela: “Estude, tu podes ter dinheiro, beleza e tudo mais, mas única coisa que nunca vão te tirar é o que tu tem dentro da cabeça, o conhecimento”.

Naquela época e nos anos seguintes, esse conselho me soava odioso e enfadonho. Principalmente nos dias de chuva e frio do interior do estado, afinal ir pra escola “quebrando geada” era terrível!. Mas a cada dia que eu conseguia ler, reconhecer uma letra e formar frases eu queria mais. Sim. Virei uma adicta do saber e confesso nunca procurei tratamento ou cura. Talvez, grande parte da culpa dela, a professora Clenir, minha primeira professora. A minha primeira professora despertou em mim a vontade de ser a primeira professora de alguém.

Eu também queria ter cheiro de mimiógrafo, carregar um diário de classe lindo, frequentar a sala dos professores e apertar o sinal. Ah! o sinal! Que sonho, apertar o sinal! Que poder tinha aquela campainha de fazer todos entrarem, saírem retornarem e serem permitidos de voltar as suas casas. Eu queria ter esse poder todo. E na minha cabeça eu tinha. Sempre imaginei ser tudo isso que a gente vive, uma encenação em que eu estava sendo testada por algo ou alguém, e que na verdade eu era uma princesa linda e aprisionada numa realidade paralela.

O conhecimento, o tempo e a vivência me fizeram perceber, que eu iria ser uma professora sim, mas não tão bonita quanto ela, a minha. Ela era loira de lindos olhos azuis. Eu não. Eu era a criança negra e pobre, que levava seu material escolar num saco de açúcar de 5kg, ou numa sacola plástica bonita trazida pela minha mãe, de uma das casas em que ela fazia faxina. Eu não poderia ser diretora, ela também era loura e linda. As únicas em que eu me via eram a faxineira e a merendeira. Negras, altivas e engraçadas. Essas sim, eu era muito parecida, em verdade era tal qual elas! Fiquei triste por um tempo por não ser loura e linda, mas  depois lembrei da minha mãe que era tudo isso : negra, altiva, engraçada sorridente e tinha cheiro de mãe, e aí não fiquei tão triste.

Resolvi ler as fábulas, e lá estava eu novamente, eu era uma princesa. Li histórias com princesas castelos, bruxas, fada madrinha, mas nenhuma era negra como eu. Porém, notei que elas sabiam ler, gostavam de ler, de saber, de inventar histórias. Aí me identifiquei um pouco. Sabe a sensação de que elas eram eu, mas não eram. Assim foi minha infância, sendo eu e não sendo.

Ser protagonista da própria história é tarefa árdua, difícil e quase impossível. Eu consegui porque tenho certeza que não sou desse mundo. Creio mesmo que isso tudo  é uma realidade virtual paralela e que eu estou sendo testada ainda, por isso consigo passar de fases, sou uma ótima “jogadora”. Eu virei professora não por causa da minha professora mas por causa da minha mãe a faxineira. Eu virei princesa não porque eu li a história e acreditei nela, mas porque eu escrevi a história.Não é que no fundo o protagonismo sempre esteve ali de vassoura e balde na mão?. Sejamos faxineiras, merendeiras/protagonistas dos nossos destinos. Vamos encher nossas cabeças pra que nunca nos tirem tudo, pois sempre haverá algo lá dentro.

Valéria Barcellos

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Obs: um filme passou na minha cabeça, escrevi isso em lágrimas. Dona Ângela, minha mãe deve estar orgulhosa da faxineira professora que ela criou. Em alguns momentos de dificuldade financeira, tive de fazer faxina também e nem faz tanto tempo assim ( 2 ou 3 anos atrás). Quando as pessoas entenderem que precisamos muito mais desses profissionais que eles de nós, talvez as coisas mudem!