Representação e Representatividade
No campo político, existe diferença entre representação e representatividade?
Não existe uma só resposta para essa questão. Aqui defendo que existe diferença entre os dois conceitos.
A REPRESENTAÇÃO É O ATO DE REPRESENTAR E TOMAR A PALAVRA, A NARRATIVA POR ALGUÉM DE MANEIRA AUTORIZADA.
Por exemplo, uma pessoa é eleita para um cargo legislativo, com a tarefa de falar por um determinado segmento da sociedade ou por uma agenda, pode ser em nome de profissionais de educação ou da defesa de uma reforma educacional que atenda crianças com múltiplas deficiências. A representatividade não está relacionada somente à agenda; mas, ao corpo que representa. Uma pessoa autista ocupando uma cadeira no parlamento com uma pauta pela educação inclusiva reúne representação e representatividade. O agente interpela com a sua presença, isto é, representatividade.
A REPRESENTAÇÃO DIZ RESPEITO ÀS PAUTAS E AGENDAS DE UM GRUPO CONSTITUÍDO.
Por exemplo, a bancada feminista, a bancada dos direitos humanos, a bancada da agroindústria, a bancada evangélica, a bancada das religiões de matriz afro-brasileira, dentre outras. Por exemplo, na bancada dos direitos humanos podemos ter mulheres indígenas, mulheres negras, homens negros, homens indígenas, mulheres brancas e homens brancos. Porém, a representatividade indígena só é possível através de pessoas indígenas.
Ora, quando crianças negras viram a angolana Leila Lopes ser Miss Universo em 2011 e a sul-africana Zozibini Tunzi ter sido consagrada campeã do mesmo concurso oito anos depois, o caso é representatividade. O que é um golpe na síndrome vampiro, porque produz efeitos psicológicos positivos. Vale outro exemplo, no ano de 2019, a direção de uma escola privada de classe média de educação infantil convidou crianças de uma escola pública de uma favela para visitar as instalações e interagir com estudantes da mesma faixa etária, tudo isso dentro de um projeto em busca de práticas em favor da democracia. Pois bem, a coordenadora pedagógica disse que na primeira visita, as crianças de classe média, quase todas brancas, se esconderam das que vinham da escola pública, quase todas negras. Ora, faltava convívio. Essas escolas não deixavam de ser duas bolhas.
A REPRESENTATIVIDADE SE DÁ COM O CONVÍVIO, O QUE FAZ MUITA DIFERENÇA.
Dos anos 1990 a 2010, não foram poucos os estudos que registraram relatos de meninas, moças e mulheres de cabelos crespos e cacheados que dormiam chorando sonhando com cabelos lisos e, não menos raro, loiros. Outra vez, representatividade em questão. Um homem negro aparecer como galã é relevante para a auto-estima de meninos negros. Na vida política, tanto quanto emocionalmente, a representatividade é algo demasiadamente importante. Uma pessoa ou um grupo que viva sob a síndrome do vampiro não consegue ter uma vida política, reconhecimento público.
O vampiro é um personagem que simboliza a falta de imagem no espelho, habitação da noite, uma vida clandestina que sobrevive vampirizando, se aproveitando de outras pessoas. Por síndrome do vampiro podemos entender uma pessoa ou grupo que é invisível, temido e que desperta o desejo “legítimo” das “pessoas de bem” de se organizar para eliminar esse “risco” da sociedade. Vampiro é uma força marginal que suga a vida das “pessoas normais” e que merece ser caçado como uma perigosa aberração.
A FALTA DE REPRESENTATIVIDADE TRANSFORMA PESSOAS E GRUPOS EM “VAMPIROS”.
Vamos imaginar uma roda de deputados bêbados e relaxados, imaginem que todos sejam homens brancos, heterossexuais, cisgêneros cristãos (católicos e evangélicos) e com idades entre 40 e 60 anos. Será que algum deles vai se opor a alguma piada machista de um colega igualmente branco, misógino e heteronormativo? Uma frase racista seria motivo de discussão? Um comentário homofóbico? Uma afirmação contra os povos indígenas? Os grupos-vampiros podem ser achincalhados. Porém, se tivermos todos os grupos étnico-raciais, gêneros, orientações sexuais e filiações religiosas “representadas”?
Por exemplo, suponha que sete deputados negros estivessem conversando com igual quantidade de homens brancos também congressistas, estes brancos não se auto-policiariam pelo “politicamente correto”? Caso, um branco fizesse alguma “piada”, é provável que pelo menos algum dos sete deputados negros rebateria o tal do “racismo recreativo” (a discriminação racial travestida de brincadeira).
Imagine uma reunião com um grupo de congressistas formado por seis homens e sete mulheres, será que algum homem comentaria os dotes físicos de uma mulher na frente das outras. Ou ainda, uma pessoa com deficiência “incentivaria” alguém sem deficiência a se auto-policiar. Não estou a dizer que a presença de uma mulher impõe o fim do sexismo e assim por diante. Porém, cria condições para um debate, principalmente se forem pessoas que representem pautas diferentes.
A REPRESENTAÇÃO ASSOCIADA À REPRESENTATIVIDADE TEM O PODER DE FERTILIZAR O TERRENO POLÍTICO DE PLURALIDADE, O QUE É UM INGREDIENTE INDISPENSÁVEL PARA A DEMOCRACIA.
A democracia carece de representação e representatividade. Do contrário ela fica frágil, perde a oportunidade de que muitos segmentos tomem a palavra. Ou seja, muitas pautas e grupos digam o que pensam do mundo e como desejam que a sociedade se organize. A democracia é a arena de choque de desejos, um esforço feito por instituições fiadoras de que as narrativas mais diversas convivam e possam disputar o estabelecimento de práticas sociais. O equilíbrio precisa que grupos em oposição tenham lugar. Na democracia é necessário que grupos que representam uma pauta desenvolvimentista anti-ambientalista não podem ficar sem o contra-ponto de “segmentos verdes” com agenda ambiental.
Dentro desses grupos de ambientalistas é importante encontrarmos povos tradicionais com um discurso que ressalte suas tecnologias. Representatividade é muito relevante. Numa sociedade em que poucos grupos têm representatividade e a representação política tem pautas excluídas por fundamentalismo ideológico, a democracia está em risco.
É PRECISO QUE TODOS TOMEM A PALAVRA E APRESENTEM SUAS PAUTAS.
Mas, engana-se quem acha que democracia é falar e reivindicar qualquer coisa. As leis continuam sendo a moldura da democracia. Não existe democracia fora da Lei. A Constituição de um país é o que organiza a regra do jogo democrático. Por isso, não é permitido incentivar crimes em nome da liberdade de expressão. Democracia não é vale tudo. Democracia é assumir a contradição, viver em tensão dentro das regras constitucionais, argumentando em favor das pautas que acreditamos serem as melhores para a sociedade. O que depende da concepção de sociedade. O que, por sua vez, tem a ver com os interesses que representamos e nosso vínculo afetivo-político com nossas identidades.
No Brasil, as Jornadas de Junho de 2013 foi um momento que problematizou representação e representatividade. As ruas diziam coisas como: “ninguém me representa” e “fora todos”. No contexto da democracia representativa, não podemos implodir as instituições e recusar a representação política; mas, devemos garantir que a maior parte da sociedade tenha seus interesses representados. Nesse cenário, ao lado da crise da representação, encontrávamos a consciência popular da falta de representatividade. Afinal, o congressista típico era um homem branco, heterossexual, cisgênero, de meia idade, mentalidade de classe média, cristão (católico ou evangélico) e de cabelo curto. Mas, a maioria da população brasileira é negra, do sexo feminino e, independente desses fatores, a democracia impõe que todos os grupos tomem a palavra.
Pontos de vista variados enriquecem as alternativas políticas. Um dos maiores riscos para a democracia é a falta de representatividade associada à redução de pautas. O aumento da representatividade e consolidação da representação política dos mais diversos setores são ingredientes fundamentais para a democracia. A síndrome do vampiro é terrível mito. Ora, mitos fazem mal à democracia.
REPRESENTAÇÃO E REPRESENTATIVIDADE SÃO FERRAMENTAS POLÍTICAS QUE SÃO INCOMPATÍVEIS COM OS MITOS. ELAS PRECISAM DE DOSES PROFUNDAS DE REALIDADE.
Renato Noguera
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