Representatividade LGBTQ no Audiovisual e Formação de Comunidade

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Em 2014, estava no ar, no horário nobre da Rede Globo, a novela "Em Família", que incluía entre suas linhas narrativas, uma história de amor entre duas mulheres. Nos meses seguintes a estreia da novela, uma grande movimentação de fãs se formou nas redes sociais, particularmente, no Twitter, e, quase todas as noites, durante os meses em que a novela esteve no ar, era possível ver nos seus trending topics, alguma hashtag contendo o nome "Clarina", uma combinação dos nomes Clara e Marina, a maneira como os fãs se referiam ao casal.

Na mesma época, eu e uma amiga, conversávamos sobre a frustração em relação ao tratamento dado ao casal na novela, e a importância da representatividade para além da visibilidade. Falávamos, também, da nossa vontade de criar algum conteúdo audiovisual dentro dessa temática, mas onde a questão fosse tratada de maneira natural, sem estereótipos ou pudor, algo que nós, enquanto mulheres LGBTQ, gostaríamos de assistir. Naquele mesmo ano, produzimos e lançamos, junto com amigos, a websérie RED, a primeira websérie brasileira de temática lésbica.

De lá para cá, muita coisa mudou. O debate da representatividade ganhou popularidade e se aprofundou, e a presença de narrativas LGBTQ no audiovisual aumentou consideravelmente, tanto em quantidade quanto na qualidade do tratamento dado a elas.

Tendo como referência a indústria americana, em seu último relatório sobre representatividade na TV, a GLAAD (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation, organização não-governamental estadunidense cujo foco é a monitoramento da maneira como a mídia retrata as pessoas LGBTQ), apontou uma taxa recorde no número de personagens LGBTQ nas produções do país. Segundo o relatório, entre 2017 e 2018, a porcentagem desses personagens subiu de 6.4% para 8.8% na TV aberta, e o número total na TV a cabo e streaming, de 173 para 208 e 70 para 112, respectivamente. (Fonte: GLAAD - Where We Are on TV Report - 2018). Outro relatório da mesma organização, mostrou que o  cinema, contudo, não viu a mesma progressão, e identificou uma queda no número de personagens LGBTQ nas produções dos grandes estúdios de 23 para 14, entre 2016 e 2017.

Ainda que as produções da grande mídia apresentem uma melhora considerável no que se trata de visibilidade LGBTQ, muitas vezes nelas, o fator qualitativo, a qualidade da representatividade proposta, não acompanha. Seja por ainda caírem em alguns estereótipos, pela abordagem pudica, ou por fazerem escolhas infelizes em relação ao destino dado a esses personagens.

Felizmente, nos últimos anos, com a democratização dos meios de produção e distribuição audiovisual, também ocorreu um notável crescimento das produções independentes que, hoje, se multiplicam na web. Nela, criadores excluídos do processo industrial e que não costumam achar no mercado formal lugar para suas narrativas - entre eles, os LGBTQ - encontraram não apenas um novo espaço para exercerem sua vocação, mas também um espaço para contarem suas histórias.

Dando origem a produções que se destacam pela autenticidade e genuinidade, tais histórias também têm contribuído significativamente para o avanço do debate da representatividade.

A interseccionalidade, por exemplo, tem sido cada vez mais debatida e abordada por criadores independentes, chamando atenção para a diversidade de vivências dentro do leque LGBTQ, mostrando que conflitos que se impõem para gays não são os mesmos que para transexuais, assim como os que se impõem para lésbicas brancas não são os mesmos que para lésbicas de cor, etc.

Da mesma maneira, muitas dessas produções já apontam para a noção da pós-representatividade, sugerindo que não se trata apenas de "normalizar" o indivíduo LGBTQ, mas representá-lo em sua singularidade. Um bom exemplo disso pode ser observado na websérie americana Her Story, escrita e protagonizada por mulheres transexuais. A série conta a história de uma garçonete transexual/heterosexual que se apaixona por uma mulher lésbica e, como consequência, começa a questionar sua feminilidade. Muito bem realizada, Her Story consegue "normalizar" a transexualidade ao mesmo tempo tratando na narrativa de algo que lhe é singular. Afinal, tal conflito só poderia ser vivido por uma mulher trans.

Contudo, a importância das produções que conversam com o público LGBTQ não se restringe ao papel da representatividade. As comunidades virtuais que se formam ao redor delas, acredito, têm a mesma relevância social, uma vez que impactam mais diretamente na vida e nas relações das pessoas. Muitas que ainda lutam para se aceitar ou serem aceitas como LGBTQ, encontram nessas comunidades de fãs uma rede de apoio e um lugar de pertencimento. Não à toa, esses fãs se mobilizam tanto ao redor dessas produções e dos profissionais nelas envolvidos.

A comunidade global formada em torno da série de TV canadense Wynonna Earp, por exemplo, que tem entre suas personagens principais um casal de mulheres, nos últimos meses, tem se mobilizado em várias ações para salvar a série que ainda se encontra sob iminente cancelamento. Em uma dessas ações, vários fãs se reuniram e pagaram por anúncios em telões em um dos mais famosos pontos turísticos de Nova York, a Time Square. O mesmo fandom, mantém uma rede de apoio para seus membros, chamada Earp Support ("Apoio Earp"), com o intuito de auxiliar pessoas da comunidade que precisam de algum tipo de ajuda.

Atendendo a demanda dessas comunidades, não apenas de poder conhecer aqueles envolvidos em suas produções favoritas (atrizes e criadores), mas também de se reunirem, a indústria das convenções de fãs se abriu para o nicho LGBTQ. Em 2018, tive o prazer de participar de uma delas, a ClexaCon, a primeira voltada para o público LGBTQ feminino.

Estar na ClexaCon foi uma experiência incrível. Ouvir pessoalmente de tanta gente, de países e culturas tão distintas, como o nosso trabalho em RED impactou suas vidas, foi muito importante para mim. Também foi especial sentir como aquele era um espaço seguro e acolhedor para todos presentes, muitos que, provavelmente, não sentem esse tipo de acolhimento em suas próprias casas.

Enquanto criadora LGBTQ, é muito gratificante saber que algo que criei tem um impacto positivo na vida dessas pessoas, assim como o trabalho de outros criadores já tiveram na minha. Enquanto alguém que cresceu como LGBTQ, sei como é importante se ver bem representado nas produções de cinema e TV, nessas histórias que habitam nosso dia-a-dia e que têm tanta relevância na nossa cultura. E, já tendo participado de algumas comunidades de fãs, sei o quanto significa se sentir aceito e compreendido e abraçado por pessoas que, muitas vezes, moram do outro lado do mundo.

Enfim, a partir dessas histórias que nos fazem sentir visíveis e representados, também bons encontros acontecem, laços se formam, e aquilo que poderia ser apenas um programa de entretenimento adquire o poder de mudar ou até mesmo salvar vidas.

Germana Belo

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