Val Talk ou “teu lugar não é aqui”!

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Se eu pegar uma fruta e comê-la na sua frente, você poderia descrever qual o verdadeiro sabor daquela fruta?

Se está doce, se está azeda...você poderia?

Não você não pode!

Você pode sentir o cheiro dela e ver suas características fenotípicas: como ela é, a cor.. seu cheiro. E a partir daí ter uma noção sua, e só sua dessa fruta.. Ainda que você coma uma fruta da mesma espécie, ou aquilo que chamamos de “a mesma fruta” claro, será outra. Sendo outra, tu não poderás saber todos os sentires disso. Porque não é você que está degustando daquilo, não é na sua boca que a fruta está.

Tal qual quando falo e exemplifico situações de transfobia e medo. Mesmo descrevendo em detalhes, tu saberás o que descrevo, imaginarás o que descrevo, mas jamais sentirá da mesma forma.

Lembrei de quando eu, imaginava, quando criança que todos éramos iguais, de maneira etérea, subjetiva e fisicamente inclusive. (Revira os olhos incrédula e risonha). Em uma das situações fui tomar banho com minha mãe e vendo que nossos genitais eram diferentes perguntei “mãe, o que é isso”? (gesto de mão apontando) ela me respondeu: “Quando cresceres tu vai ter também”...

Junta-se a isso, eu tinha uma tia com uma verruga no nariz que sumiu com um tipo de cauterização. Sei lá porque fiz uma associação de que “ah..vai cair quando eu crescer”. A  minha imaginação era e é muito fértil (risos). Eu fiquei esperando a vida toda por isso.. por quando iria cair.. nunca caiu.. Essa "não queda" me fez ser “menino” e portanto sofrente dali em diante.

Incrível pensar o quanto o imaginário do sentido das palavras pode e "pode" causar.

A palavra travesti, por exemplo, assusta e marginaliza de cara, ao ponto de ser substituída pela palavra " trans" que é um termo higiênico, de mesmo sentido, mas sem peso “moral”.  Ser travesti nos dá a realização de externalizar quem somos, mas nos coloca num certo lugar que sempre nos desoportuniza. Nos tira o direito de ir e vir por exemplo.

Lembro exatamente do dia 31/08/2015. Era uma tarde de domingo ensolarada em que eu passeava pela cidade baixa, um bairro aqui de Porto Alegre. Estava feliz pelo lindo show da noite anterior, acordei tarde, fui procurar um lugar para “almoçar” ás 16 horas. Um senhor negro de aparentemente uns 40 anos, bem vestido com uma mochila nas costas discute comigo. Me xinga das mais variadas coisas: lixo aberração, coisa..” Eu me aproximei pra revidar os xingamentos. No afã da discussão não percebi que ele tinha na mochila uma chave de fenda. Ele me esfaqueou com o objeto e ninguém fez absolutamente nada. A culpa por ser esfaqueada era minha. Afinal, as marginais sempre somos nós!

De tudo que ele disse uma frase não saiu da minha cabeça : “teu lugar não é aqui”!

Ele tem razão..

Meu lugar não era ali.

Meu lugar é falando por e com muitas iguais a mim. Ouvindo, discutindo e oportunizando falas e ações concretas. Fazer com que as pessoas  nos conheçam e percam o medo e que não tenham mais medo por coisas que nem conhecem. Que só imaginam, que só ouviram falar pela boca de outros. Temos muito  dizer e fazer. Parem de acreditar em tudo que se fala pela boca de outros como contos de fadas que não existem.

Aproxime-se. Abrace

AH.. Nem precisa beijar sapos como nos contos de fadas. Não somos fadas. Somos reais: se você fala ou acredita em fadas vamos procurar ajuda a psicológica?

Vocês tem medo do que não conhecem, e aquilo que erroneamente conhecem os fazem ter medo, e ainda, e nem, se permitem nos conhecer. Não queremos invasões cerebrais ou mudanças de comportamento.

Queremos ser invisíveis, reclamar do tempo, do calor, do preço alto do pão.

Ao contrário do que vocês pensam não queremos destaque. Queremos o lugar comum. Estar aqui e ali junto a vocês. Queremos ser o “vocês”. Termino perguntando como sempre faço:

Quantas pessoas trans vocês conhecem?

Quantas você chamou para ir na sua casa? 

Você já teve desejo e não se envergonhou disso?

Quantas já beijou?

Quantas são suas ou seus melhores amigos?

Quantas já passaram as festas de fim de ano contigo?

Quantas você  já fez uma festa surpresa de aniversário ou ganhou uma?

Se tua resposta foi NENHUMA: COMPARE COM O TODO DE TUAS RELAÇÕES E SE PERGUNTE :

VOCÊ NOS CONHECE PORQUE TEM MEDO, OU TEM MEDO PORQUE NOS CONHECE?

Valéria Barcellos

Instagram @valeriabarcellosoficial

Este texto foi apresentado no TEx Unisinos