Água como sujeito
O que significa afirmar: “A Água é um sujeito!”?
Duas perguntas se seguem daí: “O que é a Água?” e “O que é um sujeito?”.
Uma das formas de abordar a Água é na qualidade de recurso renovável, porque ela tem o poder de se recompor por ciclos naturais de renovação. Porém, ainda que a Água se renove por conta de processos físico-químicos e biológicos que permitem diluição e/ou eliminação de esgotos, resíduos e poluentes; ela é limitada, porque a quantidade total disponível não equivale ao total com qualidade para uso.
Os estudos na área de Geografia apontam que apenas 2,5% da Água do planeta é doce. De acordo com dados da World Business Council for Sustainable Development (WBCSD – Conselho Mundial de Negócios para Desenvolvimento Sustentável), a Água potável tem sido explorada numa proporção absurda, o que ameaça o reabastecimento. De acordo com a United Nations Children's Fund (Unicef–Fundo das Nações Unidas), menos de a metade da população mundial tem acesso à Água potável, a maior parte tem sido destinada para agricultura (73%) e para indústria (21%), só o restante é destinado para consumo humano doméstico direto. Dito isso, podemos resumir numa frase:
a Água potável é um recurso ameaçado.
Se pensarmos usando a lógica que os “fins” qualificam os fins, nós precisamos explicitar os princípios que levam os Estados nacionais e boa parte das organizações a se disporem politicamente sem um planejamento estratégico que enfrente a iminente falta de Água potável. Quais as ideias, motivações, ideologias e projetos que embasam essas ações? Por que as autoridades políticas parecem que não se preocupam de modo resolutivo com um futuro próximo sem Água suficiente para a sobrevivência de todas as pessoas do Planeta?
Aqui, vale a pena recorrer às filosofias de Orunmilá e de Antônio Bispo dos Santos (Nego Bispo). Orunmilá, filósofo antigo iorubá, argumenta que os elementos Água, Ar, Terra e Fogo não são coisas, mas sujeitos. A filosofia de Nego Bispo reclama pela biointeração ao invés do desenvolvimento sustentável.
A Água não é interpretada como um recurso, alguma coisa que serve à humanidade, tal como um objeto numa gôndola de mercado à disposição do consumidor.
O problema pode ser descrito de um modo bem simples, o ocidente, aqui entendido como uma cosmovisão eurocristã – para parafrasear Nego Bispo – interpreta o Mundo como um território que deve atender aos desejos da “humanidade” (leia-se o desejo de alguns humanos: gente branca dos países desenvolvidos e as elites dos países em desenvolvimento). No entanto, diversos estudos apontam que nesse ritmo de consumo desenfreado de Água potável para certas áreas de produção, falta de saneamento básico em algumas regiões do Planeta, descarga de dejetos industriais não tratados nos leitos de Água, contaminação de aquíferos por conta de produtos químicos agrícolas; além de mudanças climáticas que alteram ciclos de chuva e seca, a tendência é que a Água se torne escassa mesmo para as elites dos países desenvolvidos. Num possível mundo distópico futuro isso significa: uma guerra de todos contra todos pela Água. A raiz está em tomarmos a Água como sujeito, isto é, como um aspecto da Natureza que não pode ser usado como algo descartável e infinito, mas como uma pessoa que precisa de cuidados.
A Água não é um objeto, uma ferramenta, algo que humanos podem manipular e usar de acordo com demandas de mercado.
De acordo com Orunmilá, podemos compreender a constituição do Mundo a partir de quatro elementos Ar, Água, Terra e Fogo, a vida no Planeta depende do equilíbrio de todos. Mas, o que significa exatamente afirmar que a Água é um sujeito? De modo bastante amplo, a partir da filosofia e da psicanálise, o sujeito diz respeito ao desejo, interesses e lugar de fala. Um sujeito tem interesses e desejos. As mais diversas formas de opressão retiram o direito à condição de sujeito das pessoas, a escravização negra foi o modelo mais perverso e estruturante do mundo moderno.
Em Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, Grada Kilomba fala da máscara de silenciamento, um artefato escravocrata que calava as pessoas escravizadas. A máscara representa o colonialismo, uma mordaça. Se voltarmos ao filósofo Frantz Fanon, o colonialismo significa, justamente, um processo de ocupação baseado na violência. A Natureza tem sido ocupada violentamente pela Indústria neoliberal que prega o desenvolvimento como uma salvação, o seu funcionamento passa por poluir rios e queimar florestas.
A crise hídrica significa que a Água é um sujeito amordaçado.
Se tomarmos a análise de Nego Bispo, existem basicamente duas visões de mundo: cosmofóbica e cosmofílica. Num contexto cosmofóbico: a colonização é uma regra, o que permite que seres vivos e toda a Natureza sejam tratados como coisas. Nessa conjuntura, a Água é entendida como um “recurso”. Já uma realidade cosmofílica e contracolonial permite interpelar a Água como um sujeito.
A inscrição de a Água na categoria de sujeito implica em falarmos de uma subjetividade de alguém com necessidades, desejos, uma agenda, um projeto de vida. É essa noção que precisamos imprimir se quisermos um mundo em que não falte Água. A humanidade precisa ouvir o que a Água tem a dizer. A filosofia de Orunmilá é decisiva para compreendermos a Água como um sujeito, uma pessoa cuja personalidade emerge nas palavras de Pai Paulo de Oxalá: “Grande Mãe, o Sangue da Terra, a Essência da Vida e o Axé de Todos!”. Olokun, Iemanjá, Oxum, Iara, Naiá (Vitória-Régia) são algumas expressões da Água.
Imagem : http://www.abinam.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=398&friurl=:-Agua-Mineral:-uma-fonte-de-beneficios-para-a-saude-:
A Água é um sujeito feminino com direitos.
É preciso uma articulação política que produza os Direitos da Água. Não se trata mais dos direitos que as pessoas têm à Água; mas, de considerá-la agente político, o que implicará numa relação amistosa que pode impedir a escassez, tornando a água potável abundante para todos os seres vivos. O caminho para que os direitos da Água sejam respeitados começam pelo princípio de implodir a cosmofobia colonial e permitir a emergência de uma realidade cosmofílica. Num mundo “regulado” por leis, é o momento de um manifesto pelos direitos da Água. Se essa for uma prioridade da humanidade, nunca faltará água. Mas, se insistirmos em pensar a Água como uma coisa, seja com a expressão “recursos hídricos” ou “recursos naturais renováveis”, é bem provável que a escassez de Água potável se torne crônica.
Renato Noguera
Instagram @noguera_oficial
Siga no instagram @coletivo_indra
Webinário Água, Inovação e Desenvolvimento Humano – organizado por Waterlution Brasil
https://zoom.us/webinar/register/WN_g63yDotlQZG3QlBaHC1F1w
Referências.
BRASIL, Agência. Mais da metade da população mundial não tem acesso a saneamento básico, diz ONU. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2017-07/mais-da-metade-da-populacao-mundial-nao-tem-acesso-saneamento-basico. Acesso em 03/09/2020
FANON, Frantz.Os Condenados da Terra. 2º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. FANON, Frantz. 2010
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.
NOGUERA, Renato. “A questão do autoconhecimento na filosofia de Orunmilá”. In: ODEERE. Revista do programa de pós-graduação em relações étnicas e contemporaneidades. V. 3 n. 6. São Paulo. UESP: Afrofilosofias e saberes diaspóricos: filosofias pretas nas palmas das mãos. 2018. Disponível em: http://periodicos2.uesb.br/index.php/odeere/article/view/4328. Acesso em 03/09/2020
OXALÁ, Pai Paulo. Água o Axé detodos. Jornal Extra. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/religiao-e-fe/pai-paulo-de-oxala/agua-axe-de-todos-4380368.html Acesso em 03/09/2020.
SANTOS, de Antônio Bispo dos (Nego Bispo). Saberes orgânicos e saberes sintéticos: um olhar quilombola sobre o colonialismo. Nossa ciência ao alcance de todos. Revista virtual. Disponível em: https://nossaciencia.com.br/colunas/saberes-organicos-e-saberes-sinteticos-um-olhar-quilombola-sobre-a-colonialismo/. Acesso em 03/09/2020