Carta a Jéssica Balbino sobre a fonte cósmica universal

Jaconé, Saquarema,R.J. 15 de abril de 2020

Querida irmã de luz Jéssica Balbino

Nesses dias tão aterrorizantes, ontem tive uma sensação nunca sentida em minha vida aos ver pelos noticiários da televisão centenas de covas sendo abertas por vários Estados brasileiros devido a essa nova doença, a Covid-19, que está matando milhares de pessoas em todo o mundo. Tive a sensação que estávamos revivendo o holocausto e tive uma forte dor de cabeça, algum enjôo e uma grande mal estar. Comecei a não ver o futuro, comecei a querer alcançar algo no ar e não conseguia. Minhas mãos estavam vazias! Tudo estava distante.

Fui para o quarto, sentei-me em minha poltrona e comecei a ver vídeos no celular totalmente desfocados dessa tragédia que nos acomete. Como faço yoga para iniciantes, e há muito tempo meditação, resolvi fazer alguns exercícios respiratórios. Aí lembrei-me de você querida Jéssica e resolvi escrever essas linhas, enfim uma carta para você, irmã. E me lembrei de nossos diálogos sobre o empoderamento das mulheres, e fiz uma rápida análise desses meus 70 anos, vividos com muito esforço, enfrentando por toda uma vida várias enfermidades, mas superando cada uma delas como se eu fora uma grande elefanta carregando os ensinamentos tradicionais de minha avó indígena paraibana.

E me lembrei que em todos os lugares onde passo, falo da questão da migração e racismo aos povos indígenas que continua até hoje vitimados pelo sistema governamental não respeitando a Constituição de 1988. Um exemplo clássico refere-se a minha família antiga que morreu por consequências da migração das terras paraibanas e racismo, com doenças urbanas. Refiro-me as minhas tias-avós/avôs, avó e mãe.

Viver forçado fora de suas terras é assinar a própria morte prematura.

Esse caso já não é mais invisibilizado, em meus textos dou grande ênfase a esse tema. A saudade, o afastamento, medo, depressão, a história de violação dos direitos indígenas causados pelo afastamento forçado de seu habitat traz um contingente especial que precisa de cuidados. Aqui é assim, neste país, Jéssica, onde um  grande número de indígenas vive nas periferias de forma humilhante e constrangedora, um povo milenar que traz em suas filosofias uma grande sabedoria desde que o mundo surgiu. Povos indígenas, originais ou étnicos desde os primórdios da civilização vivem de forma diferenciada e trazem conhecimentos profundos referentes ao equilíbrio físico do seu habitat. 

Tenho um pouco de vergonha de falar de minha pessoa, mas em 1989 eu criei a primeira organização de mulheres no Brasil, o GRUMIN/Grupo Mulher-Educação Indígena e saí pelo Brasil a fora e no mundo divulgando essa idéia de fortalecimento do papel da mulher indígena. Fui longe, cheguei à ONU, depois de um discurso que fiz num Congresso indígena norte-americano no Novo México onde havia mais de dois mil indígenas. E em todos os meus textos ou discursos e palestras eu dizia:

“Mulheres Indígenas, criem suas organizações mesmo dentro de suas casas”. 

Pouco se falava a cerca de direitos humanos das mulheres, muito acontecia sobre violência doméstica nas casas pobres, ricas, com mulheres negras, indígenas, brancas e de todas as etnias, mas tudo era abafado. Mas hoje somos vitoriosas, pois temos a Lei Maria da Penha e outros mecanismos que punem homens violentos. Mas ainda há que se construir muito, porque o ser humano está muito superficial em sua essência. O ser humano não quer “ser”, quer “ter”. O “meu” é mais importante que o “eu”, essência, energia vital, eu interior, autoconhecimento, aspectos intuitivos como princípios de vida. Ninguém mais que se conectar à fonte de luz planetária, mal se olha as fases da lua, as diferenças solares, os ciclos dos mares, a melhor hora para o plantio e se acrescentam hormônios nas nossas preciosas frutas, legumes e verduras. E como elas sofrem esses impactos, como elas gritam socorro e ninguém escuta.

Insensíveis nunca tem gratidão a nada.

Jéssica, nós estamos presas no planeta, há amarras para todos os lados. A pandemia só veio dar mais uma mãozinha à nossa prisão interior. O confinamento social é apenas uma primeira parte para o que os grandes mestres indígenas de todo o planeta, étnicos do passado provem as suas palavras seculares. As grandes civilizações originárias e sábias foram devastadas do planeta. O Criador aqui colocou mentes, corações e almas altamente conhecedoras de valores, princípios éticos como a irmandade, a coletividade, a espiritualidade, os conhecimentos tradicionais, a solidariedade e o grande amor ao próximo. As sociedades modernas, contemporâneas destruíram todos esses valores em detrimento de “ter” ao invés do “ser”.

As religiões com suas vaidades pessoais destruíram a UNIDADE UNIVERSAL DIVINA CÓSMICA, fonte de energia e luz.

As religiões querem apenas saber dos holofotes sobre suas personalidades doentias, maquieavélicas, manipuladoras  usando e abusando dos incapacitados, dos pobres , dos miseráveis, dos sábios sem coroas. Na economia e na ciência acontece o mesmo: holofotes! Salvo os verdadeiros cientistas.

Hoje, nas sociedades, muitas mulheres modernas e conscientizadas de seu próprio valor disseminaram os conceitos do “feminino sagrado”, trazendo para suas vidas pessoais, filosofias que pudessem fortalecê-las a partir da autoestima, da sexualidade, das artes, cultura, relações humanas, enfim... um grande leque de atributos. No entanto, como mulheres indígenas sabemos que essa relação Terra/natureza/mãe/útero é muito forte nos conhecimentos tradicionais indígenas, base para as novas sociedades, educação e saúde e que existem desde os primórdios da história indígena.

As visões indígenas e cosmologia (que a sociedade chama mito) para nós, indígenas, é o nosso dia a dia, são nossas histórias de vida. É  o nosso pão de cada dia, querida Jéssica. São os ensinamentos ancestrais deixados pelas nossas etnias. É importante que a sociedade contemporânea saiba que a valorização da MÃE –TERRA é um conceito preliminarmente dos povos originais e ancestrais, povos étnicos do Himalaia, do Tibet, das Américas, da África, Oceania e ÁSIA. Hoje, as sociedades transformam essas informações não só em objetos de estudo, mas às vezes na apropriação indevida com fins altamente capitalistas. Isso não pode acontecer também. Apesar disso, a contemporaneidade já vem observando essa aprendizagem com as mulheres sensíveis europeias ou não.

Todas nós mulheres somos guerreiras, todas somos elefantas fortes e para isso, Jéssica é que você faz esse seu trabalho maravilhoso, combatendo inclusive a gordofobia, além do trabalho cultural em prol da procriação da sensibilidade no coração da humanidade. Despeço-me com muita honra de ser sua amiga, irmã de luz e forte guerreira. Beijos imensuráveis da fonte cósmica. Gratidão, gratidão, gratidão.

Eliane Potiguara

Instagram @elianepotiguara

UMA ESCRITORA QUE CORRE O MUNDO

*Eliane Potiguara  recebeu do governo brasileiro o Título de “Cavaleiro da Ordem  ao Mérito Cultural em 2014. Foi indicada em 2005  ao Projeto Internacional "Mil Mulheres ao Prêmio Nobel da Paz", é escritora, poeta, professora, formada em Letras (Português-Literatura) e Educação, especializada em Educação ambiental pela UFOP. É da etnia Potiguara, brasileira, fundadora da 1ªorg. de mulheres indígenas GRUMIN / Grupo Mulher-Educação Indígena (1988), embaixadora da Paz pelo Círculo de Embaixadores da França e Suiça. Trabalhou pela Declaração Universal dos Direitos Indígenas na ONU em Genebra. Seu livro carro-chefe é “METADE CARA, METADE MÁSCARA”, pela Global Editora, 2004 e em 2019 pela GRUMIN EDIÇÕES. Ganhou o Prêmio do PEN CLUB da Inglaterra e do Fundo Livre de Expressão, USA. Possui vários livros infantis e textos, pensamentos e poesias em antologias nacionais e internacionais.Para acessar seus livros e histórico de vida, visite o site oficial da escritora.

 Site pessoal: www.elianepotiguara.org.br     Institucional:   www.grumin.org.br